09 março, 2024

RPGs são sobre "falhar" - Texto original de Felipe Tuller

Uma palavrinha antes de começar:

Salve, salve, pessoal! É com muito prazer que venho compartilhar com vocês o primeiro texto original do blog! Ele foi escrito por mim ao longo de uma semana péssima na qual minha internet caiu e ficou fora do ar por anos. Em meio a esse pequeno apocalipse digital, nas horas nas quais eu não estava trabalhando (ou tentando convencer os atendentes de telemarketing de que os técnicos da internet nem sequer tinham aparecido no meu endereço), eu estava pensando avidamente nos meus projetos de RPG que foram obrigados a ficar estacionados: nas mesas online que tiveram que ser canceladas, nas gravações dos episódios do Tomos Revelados que foram adiadas... e então  talvez movido pela força do ódio em relação à minha (ex) provedora de internet  eu resolvi botar a mão na massa mesmo assim: comecei a escrever um texto sobre minhas reflexões sobre RPG. O texto a seguir foi o que nasceu naquela semana maldita! O formato ficou bem no estilo "ensaístico", levantando algumas ideias e reflexões, mais com a intenção de gerar um debate a partir do meu ponto de vista do que de fato "cravar" uma verdade absoluta.

Além disso, um spoiler bacana: esse texto vai ser publicado (em inglês) na revista Knock! O editor da revista, Josh MCcroo, é um cara muito gente boa (você deveria seguir ele no twitter: ele deve lançar um sistema em breve que aprece incrível, que usa cartas de Tarot ao invés de dados!) Josh foi super solícito, cuidadoso e respeitoso com o meu texto. Essa versão abaixo já conta com algumas das modificações que ele sugeriu (em termos de conteúdo, o que rolou, basicamente, foi que 80% das piadinhas sem graças e das digressões foram cortadas hahah).

Sem mais delongas, aqui vai o texto. Espero que gostem!

 

RPGs são sobre "falhar"

Imagine a seguinte situação: Melion, o elfo, tem 3 pontos de vida. Ele está num castelo em ruínas sendo perseguido por cultistas. Melion corre sozinho, sem fôlego, desviando-se de obstáculos da dungeon até que, de repente, ele vê a saída do outro lado de um abismo. É tudo ou nada. Melion olha para trás, já ouvindo os gritos insanos dos cultistas se aproximando. Ele respira fundo, dá um salto e... pula desajeitadamente, caindo no abismo. Tudo fica escuro. Depois de alguns segundos de desorientação... Melion, o elfo, tem 2 pontos de vida. Ele se encontra em um castelo em ruínas sendo perseguido por cultistas. Melion corre sozinho, sem fôlego, desviando-se de obstáculos da dungeon até que, de repente, ele vê a saída do outro lado de um abismo...

Se você pensou "Nossa, igual um videogame!", você está absolutamente certo! Deixando de lado minha tentativa de fazer piada, permita-me resumir essa cena: Melion, o elfo, falhou ao pular sobre um precipício. Ele cai no abismo, perde "PVs" e volta ao ponto de partida. O conceito de "reiniciar" ou "vidas extras" é algo bem comum nos videogames. A ideia por trás dessa mecânica é simples: "Você falhou! Tente novamente." No entanto, a menos que você esteja jogando um RPG cômico no estilo de Paranoia, o caso do elfo que acabei de descrever certamente geraria protestos e cara feia de todos à mesa.

Mas e se eu dissesse que os jogadores de RPG de mesa fazem coisas semelhantes o tempo todo em suas mesas? Como toda nova forma de mídia ou arte, os RPGs sofrem por serem tratados e interpretados como se fossem análogos a algo que já existe. Foi o mesmo com a fotografia e o mesmo com o cinema. Durante o surgimento do cinema, por exemplo, os primeiros filmes narrativos se pareciam mais com um "teatro filmado". Levou tempo para os cineastas perceberem que a característica fundamental de sua forma de arte não estava em copiar o que era feito no teatro, mas em aproveitar as forças de seu próprio meio (neste caso, o potencial da "edição") para levar sua forma de arte ao seu ápice.

Em seu ensaio intitulado "Regra das Três Pistas", Justin Alexander diz que o problema ao preparar enredos para um cenário de RPG é que isso se parece muito com tentar programar um jogo de computador: muitos Mestres, influenciados pela grande quantidade de filmes e videogames em que uma experiência narrativa linear era o tema central, acabam tratando seus RPGs como se fossem um meio também dominado pela forma da narrativa linear. Portanto, diz Alexander, esse tipo de Mestre acaba "programando respostas predefinidas", como alguém criando um jogo de computador. Este é um dos maiores problemas que os RPGs enfrentam hoje: a noção de que os RPGs são uma forma de "contar histórias", assim como os filmes. Que os RPGs precisam antecipar certas ações dos jogadores, assim como certos videogames fazem. E, já que são uma "história", é necessário ter um "roteiro", antecipar eventos e guiar os jogadores ao longo desta história previamente escrita, belamente costurada pelo Mestre. Isso não se parece justamente com o caso de um filme querendo ser um "teatro filmado"?

Desde a publicação do ensaio de Justin Alexander, acredito que avançamos muito nessa questão. A dica "Não force sua história nos jogadores, construa a história junto com seus jogadores durante o jogo" agora é muito mais difundida na comunidade do RPG. No entanto, acho que esse conselho não é suficiente. Além disso, ele acaba obscurecendo uma questão muito mais radical que considero essencial para nossa "forma de arte" (se é que podemos chamar assim): Os jogos no estilo RPG, como o nome sugere, são (surpreendentemente) um jogo. Qualquer tentativa de transformar os RPGs em uma forma de narrativa antes de ser um jogo será um equívoco. Dito isso, não estou criticando os chamados jogos "narrativistas". Pelo contrário: admiro muito este estilo de RPG precisamente porque um bom jogo narrativista usa suas mecânicas e dinâmicas para direcionar o grupo a um novo lugar, preparando um palco espetacular para os jogadores interpretarem de maneiras muito específicas.

Com isso, não quero dizer que os RPGs e os videogames não são bons canais para contar histórias, desenvolver narrativas e criar experiências compartilhadas. Muito pelo contrário: acho que ambos os meios são as formas mais radicais de se fazer isso. Meu ponto é que, por mais que a construção de uma narrativa seja algo intrínseco a um RPG, ela é produzida de maneira muito distinta de uma obra de ficção precisamente porque o ato de jogar vem antes de todo o resto. Enquanto tratarmos os livros de RPG como literatura ou livros de história, enquanto criarmos aventuras de RPG com a estrutura narrativa do cinema e com mecânicas de videogame, não estaremos extraindo todo o potencial desse meio.

(Eu não sou o tipo de pessoa que gosta de estragar a diversão alheia. De forma alguma estou dizendo: "Você deve jogar de determinada maneira porque o que você está jogando não é um RPG de verdade!" Essa é a graça dos RPGs: não há linha de código impedindo você. Vá em frente, faça o que quiser, jogue da maneira que parecer mais divertida. Quebre as regras do sistema!)

Sobre o que são os RPGs de mesa, afinal? 

Para mim, os RPGs são sobre "falhar". Em nenhum outro tipo de jogo sou capaz de falhar em paz. Os RPGs me permitem fazer isso. Olhe nosso exemplo inicial, por exemplo. O pobre elfo Melion, tentando pular sobre o abismo, teve sua falha negada, e toda a sua existência reduzida a uma paródia de Super Mario. Como jogador de RPG, acredito que um jogo que não respeita minhas escolhas (ou melhor, que não se preocupa com as consequências de minhas ações) está sempre caminhando para o desastre. Como jogador de RPG, gosto de acreditar que (1) sou livre para escolher como agir; e que (2) seja qual for o resultado de minhas ações, qualquer que seja a ação de meu personagem, o jogo apresentará consequências significativas. Nada mais, fora do RPG de mesa, pode unir harmoniosamente esses dois pontos.

Depois de cair do penhasco, um mestre de jogo mais complacente poderia pedir a Melion para fazer um teste de Sorte e  veja só!  ele acaba não morrendo afinal. Ele simplesmente cai no rio. Talvez Melion sofra um dano massivo pela queda, quebrando as pernas quando atinge a água. Pelos deuses, Melion poderia até mesmo morrer! Mas em uma boa sessão de RPG, até mesmo esse erro fatal teria criado ramificações emocionantes de uma maneira que não pode ser produzida em nenhum outro tipo de jogo. Por exemplo: Melion morre, mas o rio arrasta seu corpo diretamente para sua cidade natal, para o horror de seus parentes que o haviam avisado do perigo que espreitava no castelo abandonado no topo da colina. A partir daí, o Mestre poderia dizer que a vila de Melion nunca mais ajudaria os aventureiros que o deixaram morrer e pararia de fornecer a eles suas ervas mágicas. Tenho certeza de que, depois de ler meus exemplos, você também pensou em várias outras consequências relevantes e intrigantes para a morte do pobre Melion. Os RPGs são um meio que permitem que as mentes paranoicas e inquietas se satisfaçam ao conectarem pontos de necessidade e verossimilhança entre eventos que anteriormente não tinham nenhuma ligação.

Em resumo: nos RPGs, o jogo não termina quando um personagem falha. Pelo contrário, o jogo tem a capacidade de continuar e se tornar ainda mais interessante do que era momentos antes. Os RPGs não são apenas uma forma de contar histórias de grandes heróis e sua jornada inevitável em direção ao sucesso, mas um jogo que tem a capacidade inigualável de ir literalmente a qualquer lugar e lidar com qualquer eventualidade. Respeitar o fracasso do jogador significa respeitar a força de um meio que pode sustentar as verdadeiras consequências das decisões de um jogador, sejam elas quais forem. Em outras palavras, a capacidade deste meio de transformar qualquer evento em combustível para criar ainda mais jogo é incomparável. Falhar em um RPG pode ser tão divertido quanto vencer. Isso é o que torna os RPGs tão únicos.