"hiperdiegese" é uma palavra usada para descrever elementos de uma obra criativa que não são explicados, mas que dão a entender um cenário maior. Exemplos bem conhecidos de hiperdiegese incluem:
“Navios de ataque em chamas ao longo do ombro de Orion. Eu vi raios-C brilharem na escuridão perto do Portão de Tannhäuser.”
Blade Runner
“Você lutou nas Guerras Clônicas?” “Sim. Eu já fui um cavaleiro Jedi, assim como seu pai.”
Star Wars
“Quando você abre seu cérebro para o mundo do maelstrom psíquico, role +weird.”
Apocalypse World
Esses exemplos, obviamente, foram soterrados por “retcon” por uma infinidade de continuações. O termo "hiperdiegese" foi cunhado por Matt Hill, embora eu o tenha encontrado aqui nesse link e selecionado algumas citações, já que você consegue lê-las por conta própria, e também porque isso aqui não é uma análise crítica – é uma reflexão minha sobre essa ideia.
“…a criação de um vasto e detalhado espaço narrativo, do qual apenas uma fração é vista ou encontrada diretamente no texto…”
Matt Hill, Fan Cultures
“…o mundo é construído ao longo da série acumulando e reiterando detalhes. Menções a pessoas, lugares e eventos sugerem um mundo completo com uma história vasta…”
Matt Hill, Defining Cult TV
Vou falar sobre isso no contexto dos “jogos de elfo faça-você-mesmo”, especialmente módulos e cenários. A hiperdiegese em filmes pode ter a intenção de semear conexões para futuros episódios (como no início do Universo Cinematográfico Marvel ou em várias séries de Star Trek), mas também pode ser comentários isolados que buscam dar uma sensação de vastidão. No RPG, é intencionalmente um espaço que a mesa de jogo preenche.
Então: pessoalmente, eu adoro hiperdiegese nos meus módulos e cenários. Mas percebo que entre muitos árbitros há uma certa resistência a isso. Vejo pessoas reclamando repetidamente: “Não está explicado quem é tal personagem” ou “se esse nome não se refere a alguém no módulo, não deveria estar aqui”. Obviamente, eu discordo dessa preferência, mas é uma preferência e é válida. M. John Harrison foi menos generoso — ele chamou isso de “peso do excesso de nerdismo,” mas acredito que, em RPGs de mesa, esse “peso do excesso” pode ser justificado. Vamos explorar (perguntei a alguns amigos que escrevem jogos e módulos) de onde vem esse impulso e se devemos contorná-lo ou abraçá-lo.
Eu encontrei problemas com o tema dos detalhes hiperdiegéticos na excelente série de zines Through Ultan’s Door de Ben L. e descrevi-os assim:
“Eu temo a falta de clareza — ‘por que o salão de banho está ensanguentado?’ — para mim resultaria em uma espécie de paralisia de improvisação, na qual a falta de informações, em um mundo muito maior e crescente, me faria hesitar em criar minhas próprias respostas, com medo de contradizer algo que não lembro ou que ainda não foi escrito.”
Eu, aqui
Então, eu sou menos receptiva a informações hiperdiegéticas porque se eu inventar algo errado poderia arruinar algo que já existe no mundo, que pode aparecer em uma futura edição ou quebrar a narrativa. Zedeck Siew sugeriu que isso significa colocar em risco a criação de “interrupções no tecido do mundo em vez de evoluções (porque o autor não está presente na mesa)”. Há uma solução para isso que pode ser realizada num nível editorial: sinalizando as informações hiperdiegéticas. Zedeck sugeriu referenciar páginas no documento por omissão, em vez do método atrapalhado de dizer “isso é hiperdiegético”.
As informações diegéticas podem ser enganosas. Chris McDowall sugeriu que a “nebulosidade das informações” em RPGs de mesa — o fato do árbitro desempenhar o papel de todos os sentidos dos jogadores — pode transformar informações hiperdiegéticas em ruído confuso, dificultando a distinção entre o que é informação relevante e o que não é. Por exemplo, o uso de nomes de lugares ou pessoas que não são imediatamente relevantes para o enredo pode distrair os jogadores do módulo ou aventura em questão. Talvez esta observação casual de Crown of Salt possa fazer com que os jogadores desviem de sua missão pela segunda espada. Por exemplo: “Uma cópia idêntica da Lâmina do Rei Esquecido”.
Uma terceira preocupação é que um árbitro com pouca confiança em improvisação, ou que adere rigidamente ao método Blorb de mestrar aventuras, não vai curtir o fato de uma informação não estar disponível em um almanaque, no apêndice ou seja lá onde for. Uma vez eu mestrei uma campanha de Dragonlance, um mundo que conheço bem, usando um site de wiki incrivelmente detalhado. Certamente há um prazer em participar desse tipo de jogo no qual sempre há uma resposta certa. No entanto, eu acho que temer não saber a resposta certa vai contra os pontos fortes dos “jogos de elfo faça-você-mesmo”. Esse reconhecimento da improvisação como uma força especial do hobby remonta aos primórdios:
“...informação total e absolutamente perfeita não será necessária, mas um esquema geral é necessário. A partir disso, você pode dar dicas vagas e respostas ambíguas... a interação do árbitro e dos jogadores transforma o esqueleto básico em algo muito maior [...] se aventurar dá um sopro de vida a um mundo de faz de conta...”
Gary Gygax,Guia do Mestre AD&D 1e
Eu esperava tirar alguns princípios desses medos, para melhor escolher onde colocar informações hiperdiegéticas, obter o melhor efeito e minimizar reações alérgicas, mas percebo agora que minhas ideias iniciais sobre esses princípios estavam erradas. Acho que nesse caso nós temos que lutar contra nossos instintos. Isso se tornou uma postagem sobre como mestrar e jogar, em vez de como escrever. Surpresa!
Apoie sua improvisação. Ninguém é bom em improvisação no vazio. Você precisa abastecer sua despensa: consulte produtos que já possui. Leia coisas de outras pessoas. Blogs. Livros. Tenha uma pilha de módulos não usados. Leia-os e lembre-se deles. Monte sua coleção de geradores e documentos de apoio. Há sempre algo que já foi escrito sobre todos os assuntos. Nos dias de hoje, mais de um módulo é lançado por semana, então você geralmente não precisa criar algo novo se acompanhar o hobby de perto. Roube na cara dura. Assim, você terá algo disponível quando for forçado a improvisar: não passa de um roubo glorificado, então encha seus bolsos de ouro. E fazer isso é fácil porque…
Jogos de sandbox são sobre desvios. Se você se desviar do planejado, abrace isso. Vá encontrar a segunda espada. Faça dela o tesouro da masmorra bônus. Adicione rumores adicionais. Aventuras sob medida guiadas pelos personagens fazem parte da dinâmica e natureza colaborativa do hobby. Se você dá apoio à sua improvisação, desviar-se do caminho original torna-se algo bom e não ruim.
Teorize ingenuamente. Parte da resistência à hiperdiegese vem do mundo cada vez mais interconectado em que vivemos; Amanda P aponta que, na maioria das vezes, um aventureiro em um mundo de fantasia vive em um mundo cheio de coisas que ele não conhece nem entende.
"...eles se encontraram por acaso em uma estalagem ou taverna e decidiram partir juntos em busca de fortuna nesses ambientes perigosos e, além do conhecimento comum da área, não sabem de nada sobre o mundo..."
Gary Gygax,Guia do Mestre AD&D 1e
Como jogadores, devemos viver nessa ingenuidade. Costumamos querer criar especialistas — “Eu saberia disso” é um refrão comum. Em de perguntar ao árbitro, apoie-se em “Não faço ideia do que isso significa; vamos descobrir juntos”. O árbitro pode e deve corrigir os equívocos no entendimento da informação; entretanto essa ingenuidade contribui para a teorização. Aventureiros devem abraçar sua ingenuidade e explorar ainda mais fundo mesmo assim, construindo suas teorias. Encoraje seus jogadores a fazerem o mesmo: o árbitro não precisa improvisar uma resposta o tempo todo, os jogadores podem teorizar sobre ela; Pergunte a eles: “Vocês não sabem. O que acham que é?”. Isso resolve o problema anterior sobre o medo de se contradizer, pois você está investigando a realidade, e não impondo-a.
Aceite o retcon. Quando interromper a realidade acidentalmente, não hesite em corrigir. Informações hiperdiegéticas devem ser usadas para criar um mundo maior, o que significa que você pode errar. Nós quase sempre jogamos em um mundo incomparável ao nosso: uma grande mudança na nossa história ou em nossa geografia pode ser facilmente ser explicada por magia poderosa ou tecnologia alienígena. Mas mesmo numa campanha sem essas possibilidades capazes de desestabilizar o mundo e a temporalidade, você pode se dar conta de que a sua realidade se resume a lavagem cerebral ou propaganda – coisas que acontecem na vida real. Se perceber que cometeu um erro, use aquilo como um evento. Uma crise sobre universos infinitos, talvez. Abrace isso como parte da natureza dinâmica e colaborativa do hobby.
[Estou me dando conta de que não tenho uma boa palavra para essa colaboração estranha e desajustada que mora no coração dos “jogos de elfos faça você mesmo”. Tema para uma futura postagem, pelo visto.]
Bem, é isso, eu acho. O hobby ganha mais quando usamos informações hiperdiegéticas. Eu acho que precisamos aprender a abraçá-las, tanto os árbitros quanto os jogadores, e nós podemos fazer isso ajustando nossas formas de colaboração.
Idle Cartulary