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27 julho, 2024

Diegesis em RPGs de mesa (OU por que eu não me oponho mais a metajogo ou discussões na mesa!)

Título original: "Diegesis in TTRPGs, (OR why I don’t oppose meta-gaming or table-talk – any more!)" Escrito originalmente por Bragrman no seu blog intitulado "Bragrman's Sidequest" em 7 de agosto de 2017

Traduzido por Felipe Tuller. 

Entre os vários grupos de Facebook e fóruns sobre jogos que eu participo, os tópicos do metajogo e da discussão na mesa aparecem semanalmente e costumam ser iniciados por Mestres relativamente novos procurando por sugestões de como controlar e até mesmo "punir" jogadores que se envolvem nessas práticas. Eu entendo como eles se sentem, porque eu já estive nesse lugar, mas ao longo dos anos acabei entendendo que essas estratégias não só contrariam a natureza e o espírito dos RPGs, mas também que a própria oposição ao metajogo e às discussões na mesa são uma oposição a elementos essenciais da experiência de jogo.

A principal razão pela qual Mestres reclamam que jogadores se envolvem em metajogo ou discussões na mesa é que isso acaba com o suspense, a surpresa ou a tensão que o Mestre está tentando criar ao ocultar informações dos jogadores, que fazem isso para permitir uma revelação dramática ou um acontecimento inesperado em algum ponto do jogo. Embora a intenção dos Mestres nesse caso seja algo positivo, acredito que eles estão buscando pelas ferramentas erradas para criar a tensão, o suspense ou o drama desejados, e que a razão principal para estarem buscando as ferramentas erradas se deve à maneira como eles veem a experiência de jogo.

Explorando o conceito de Diegesis em RPGs, pretendo explicar por que a discussão na mesa e o metajogo na verdade não são tão problemáticos quanto muitos pensam ser, e de fato, eles devem ser abraçados como partes essenciais da experiência de jogo que podem tornar a coisa toda mais agradável para todos os envolvidos. 

Primeiro, algumas definições:

  • Discussão na mesa - quando os jogadores conversam sobre coisas que não são contribuições específicas para os eventos que estão ocorrendo no jogo/dentro do personagem*1 naquele momento.
  • Metajogo - quando um jogador usa o conhecimento do jogo/regras/cenários que o seu personagem não teria como saber como base para decisões e ações dentro personagem.

A expressão "Discussão na mesa" tem suas origens nos jogos de cartas, particularmente no Bridge, no qual conversas não relacionadas ao jogo podem ser usadas para enviar sinais ao seu parceiro sobre as cartas na sua mão; isso constitui efetivamente uma forma de trapaça em um jogo competitivo. Nas discussões sobre RPGs, a discussão na mesa também é frequentemente identificada como uma forma de trapaça. Eu discordo da ideia de que isso é trapaça, e insisto, no sentido contrário, de que é um elemento essencial de jogar um RPG.

O metajogo é igualmente criticado por muitos como uma forma de trapaça. É importante notar aqui que o termo metajogo é usado para descrever uma grande gama de comportamentos que compartilham o elemento comum de “jogadores usando conhecimento do jogo que o seu personagem não deveria ter”, mas variando em extremismo, novamente, com base em como o Mestre e o jogador entendem a natureza da experiência de jogo. Mais adiante neste artigo, explicarei como o metajogo pode ser visto tanto como uma necessidade intrínseca do jogo quanto o resultado de uma pessoa que na verdade se recusa a jogar o RPG, dependendo do seu grau de envolvimento com a diegesis do jogo.

Antes de desenvolver esses pontos, preciso delinear alguns pontos-chave:

1. A inevitabilidade da narrativa e do enredo colaborativos.

Todos os RPGs, desde aqueles mais parecidos com jogos de tabuleiro focados em masmorras até os LARPs sem sistema, contém os elementos básicos de uma história; um ou mais personagens (personagens), fazendo coisas (ação), em um ou mais lugares (cenário). E cada história é composta por dois elementos, Enredo e Narrativa.

“Enredo” são os eventos relevantes da história na ordem em que aconteceram, e “Narrativa” refere-se, grosso modo, à maneira como os eventos são apresentados.

Em um RPG, tudo o que um Mestre e um jogador fazem é uma contribuição para uma narrativa e um enredo colaborativos, e é esse processo de colaboração que define a experiência de jogar um RPG.

Quando um jogador diz que seu personagem escolhe abrir a porta à direita, seguido pelo Mestre dizendo que o som da porta abrindo acorda o ogro adormecido do outro lado, eles estão construindo conjuntamente o enredo de sua história colaborativa.

Quando o jogador descreve a ação do seu personagem de uma maneira qualquer, ele está criando a narrativa, desde o simples “Eu/meu personagem abre a porta à direita” até o mais elaborado “rastejando pelas sombras dançantes projetadas pela luz vacilante da tocha, o robusto Grunthold se aproxima da porta mais à direita e, após colocar a tocha no suporte enferrujado preso na parede, segura o cabo de seu martelo de guerra em uma mão e com a outra empurra com força para abrir a porta...”

Minha proposição é que, para a vasta maioria dos grupos e jogos de RPG por aí, a co-criação de uma história colaborativa é um aspecto inevitável e, de fato, definidor da maneira como o jogo é jogado. O que tende a variar, em vez disso, é o grau com que os participantes de cada jogo encaram a sua experiência de jogo como sendo dessa maneira.

Enquanto alguns compararam isso ao clássico tropo dos deuses olímpicos sentados ao redor de uma mesa jogando um jogo de xadrez divino com mortais, eu sinto que essa imagem sugere uma expectativa de competição entre os jogadores e seus personagens.

Em vez disso, prefiro pensar em um RPG de maneira semelhante à equipe de produção de um filme, programa de TV ou produção teatral – os jogadores são os produtores colaborativos da história sendo jogada, mas são simultaneamente o público para cujo entretenimento a história está sendo produzida.
Uma vez que você vê seu RPG como sendo inerentemente um exercício de contação de história colaborativa, você também está se envolvendo em outros dois elementos intrínsecos de tal experiência…

2. Jogabilidade diegética e não-diegética

Diegesis refere-se a qualquer coisa contada por um narrador em uma história, geralmente incluindo as ações e pensamentos dos personagens. O termo foi detalhado pela primeira vez por Platão, porém, em uma linguagem mais contemporânea, particularmente inspirada pelo cinema, um elemento diegético da história é aquele que existe dentro do mundo da história, enquanto elementos não-diegéticos são aqueles que existem fora do mundo da história, mas que são incluídos em função do público.

Um exemplo comum é o da música. Se um personagem em um filme está ouvindo rádio, então a música que ele ouve seria uma música diegética. Mas se o público consegue ouvir uma música que o personagem não consegue (o que descreve a maioria das músicas em filmes), então essa é uma música não-diegética.

Quando se trata de RPGs, o ato de jogar o jogo também possui elementos diegéticos e não-diegéticos, e ambos são partes intrínsecas do jogo que, em última análise, são inseparáveis entre si.

Primeiramente, o conhecimento e a aplicação das regras por parte do jogador, o ato de rolar os dados, mover miniaturas em um mapa, questionar ou esclarecer as regras, ou discutir elementos do jogo são todos exemplos de jogabilidade não-diegética. O ato de criar um personagem é uma parte não-diegética do jogo, estabelecer e aderir às regras é jogabilidade não-diegética e, essencialmente, qualquer conversa entre os participantes que não seja especificamente parte do jogo sendo jogado em um determinado momento é jogabilidade não-diegética.

Esses elementos de jogabilidade não-diegética existem para dar forma à jogabilidade diegética, que é a construção da história colaborativa ocorrendo dentro do mundo fictício do seu jogo. Sem ter criado um personagem ou conhecer as regras que governam suas possíveis ações, um jogador não consegue decidir sobre as ações de seu personagem nem tem a oportunidade de esclarecer seu entendimento conforme se relaciona com o jogo.

A maneira como você joga seu jogo pode situar-se em qualquer ponto de uma escala móvel entre os elementos diegéticos e não-diegéticos da jogabilidade, preferindo um sobre o outro ou tentando encontrar um equilíbrio no meio. Não há uma quantidade certa ou errada de foco que se deve colocar em cada elemento, exceto aquelas que se adequam às preferências dos participantes de um jogo específico – mas ambas estão, intrinsecamente, inevitavelmente, presentes no seu jogo em algum grau.

3. Separação entre Jogador e Personagem 

Deveria parecer uma afirmação bastante óbvia a esta altura, que, enquanto o personagem é primariamente um elemento diegético do jogo, o jogador e seu envolvimento com o jogo constituem ações de jogabilidade não-diegéticas.

É absolutamente impossível para um jogador ser parte da jogabilidade diegética. Até mesmo os LARPers mais dedicados ainda são jogadores representando eventos fictícios, limitados por regras de jogo que não estão presentes dentro da ficção (por exemplo, usando espadas de espuma ou regras de combate seguro para reger o jogo). Sendo assim, por mais que a barreira entre a jogabilidade diegética e a não-diegética possa variar, ela sempre existe em algum grau.

O que importa para todos os Mestres e jogadores é que esteja clara a delimitação dos elementos diegéticos e não-diegéticos em seu jogo.

Como dito anteriormente, toda atividade dos jogadores, em última instância, manifesta-se na moldura diegética do jogo; os personagens tomam certas ações e são bem-sucedidos ou falham em seus esforços com base nas ações de jogabilidade não-diegéticas dos jogadores, conforme eles contribuem para a história coletiva.

Por mais que os desafios que existem dentro dessas histórias sejam primariamente desafios diegéticos para os personagens, isso não impede o Mestre de incorporar desafios não-diegéticos que são destinados ao jogador para que ele se envolva e resolva.

Exemplos comuns incluem quebra-cabeças de lógica ou de linguagem que os personagens encontram, mas que os jogadores têm a chance de resolver como parte da jogabilidade não-diegética. Eles então serão bem-sucedidos ou não, momento no qual o jogador pode usar as estatísticas de seu personagem e os mecanismos de jogo relacionados para alcançar uma solução diegética para o quebra-cabeça.

O importante é lembrar que, independentemente de os desafios de um jogo serem abordados como parte da jogabilidade diegética ou não-diegética, o resultado final é, em última instância, parte do jogo diegético, contribuindo para a construção da narrativa e do enredo colaborativos.

A discussão na mesa, portanto, deve ser vista como parte da jogabilidade não-diegética e como um elemento intrínseco do jogo.

Para que os personagens tomem a ação diegética mais apropriada, um jogador talvez precise esclarecer o que entende de uma tal situação, de regras específicas, etc.

Ao abraçar a conversa não-diegética – mesmo no meio de ações de combate – você está dando aos jogadores a chance de tornar suas ações diegéticas mais ricas e mais relevantes para a história. Gerenciar o tempo e o ritmo do jogo é algo que precisa ser levado em conta, mas novamente, este é um elemento de jogabilidade não-diegética que deve ser trabalhado dentro do grupo, ao invés de ser imposto pelo Mestre.

Eu também acho que essa conversa é essencial para ajudar pessoas que são novas no grupo, no jogo ou até mesmo no próprio hobby de que o seu envolvimento é bem-vindo.

(Nota – discussão na mesa é um pouco diferente de ‘conversa fora de tópico’ (“conversa off-topic”). Se você está tentando conduzir/jogar um jogo e alguém na mesa não para de falar sobre a partida de esporte de ontem à noite ou traz seu kit de artesanato para fazer fantasias para seu gato de estimação, isso não é ação não-diegética, é um problema completamente diferente.)

Metajogo – a Escala entre a jogabilidade não-diegética e não jogar o jogo

A definição de metajogo é problemática, mas, pelo menos da perspectiva do Mestre, quando se entende a experiência de RPG como engajamento na jogabilidade não-diegética para criar o enredo e a narrativa diegética, e se preparam os desafios do jogo de forma apropriada, a maioria das formas de metajogo se tornam parte da jogabilidade não-diegética e podem rapidamente deixar de ser um problema.

Em última instância, quando o Mestre e os jogadores entendem jogar um RPG como um exercício colaborativo na co-construção do enredo e da narrativa dentro dos limites de um jogo, cenário ou sistema específico, o conhecimento dos jogadores não é algo que ameaça interferir nos planos do Mestre, mas sim tem o potencial de melhorar a história que surge da colaboração.

Quando o jogador sabe algo importante sobre o mundo do jogo que seu personagem não sabe, isso pode modificar a decisão do jogador a fim de direcionar seu personagem a tomar ações que possam resultar na obtenção dessa informação, e essa busca – a contribuição do jogador tanto para o enredo quanto para a narrativa do jogo – dá ao Mestre um estímulo para construir novos sub-enredos e arcos de história.

No extremo mais problemático da escala do metajogo, você pode encontrar comportamentos tais como jogadores que ignoram o cenário diegético quase completamente e partem para perseguir seus próprios objetivos, independentemente da história coletiva, ou que insistem em usar soluções puramente não-diegéticas para desafios diegéticos. Tais indivíduos muitas vezes parecem ter uma visão competitiva do que significa jogar um jogo, e estão jogando para vencer de acordo com sua própria definição do que isso significa.

Meu argumento é que tais indivíduos na verdade não estão jogando o jogo. Se o jogo consiste nas regras, cenário e ficção específica de uma determinada sessão, então recusar-se a engajar-se de forma apropriada com todos os elementos é, no melhor dos casos, engajar-se com uma versão incompleta do jogo. É como alguém aparecer em um campo de hóquei com um ornamento de jardim em forma de flamingo rosa em vez de um taco de hóquei, enquanto ainda espera ser levado a sério.

Nesses casos, o problema  provavelmente está nas dinâmicas sociais e nos relacionamentos pessoais, e não especificamente no jogo em si, e a longo prazo, tais indivíduos precisam ser levados a uma compreensão mais colaborativa da atividade na qual estão participando ou, nos piores casos, serem excluídos.

Mas então, o que um Mestre deve fazer?

Então, se você está usando informações previamente desconhecidas para criar uma “reviravolta” na sua história, ou como uma maneira de introduzir drama e tensão no jogo, o que um Mestre pode fazer para tornar o jogo uma experiência interessante para os jogadores?

Para a maioria dos jogos, os resultados aleatórios das rolagens de dados fornecem grande parte da tensão, desde que as mecânicas dos encontros e dos desafios estejam em um nível adequado para os personagens dos jogadores - O desafio é tratar o resultado das rolagens de dados não apenas como “vitórias” ou “derrotas”, mas como estímulos para a próxima ação no enredo ou no estilo da próxima parte da narrativa.

O Mestre pode fornecer desafios adicionais aos jogadores incorporando desafios não-diegéticos para eles resolverem, porém, em RPGs o resultado final de qualquer desafio deve se desenrolar de forma diegética. Se você, como Mestre, fizer o sucesso ou fracasso depender puramente do conhecimento e das habilidades dos jogadores, sem pelo menos permitir uma opção para utilizar as regras que governam o mundo diegético, então, como o Jogador do Flamingo Rosa, você provavelmente também não está jogando o mesmo jogo que seu grupo.

No entanto, como Mestre, o que você pode fazer é definir a gravidade da situação a partir das ações dos personagens. Cada campanha, sessão, história ou até mesmo ação podem ter impactos claros que dão ao jogador e ao personagem uma justificativa para as coisas que eles fazem no jogo.

No combate, a gravidade já está claramente definida. Vença e seu personagem sobrevive e geralmente obtém coisas novas. Perca e ele provavelmente morrerá ou sofrerá algum outro revés.
Mas por que eles estão lutando, em primeiro lugar? Qual será o impacto, em sentido mais amplo, se eles vencerem, perderem ou empatarem?

Quando você vê os RPGs como uma experiência colaborativa, essas perguntas rapidamente fornecem meios para o drama, a tensão e para resultados inesperados que não podem ser duplicados de nenhuma outra maneira.

Mas isso é um tópico para uma futura postagem.

NOTA: Esta postagem foi amplamente revisada após várias discussões com outros jogadores no Reddit e nos fóruns da Onyx Path. Agradeço a todos que questionaram algumas das ideias iniciais e que ajudaram a trazer clareza ao texto.

28 junho, 2024

21 abril, 2024

Então você quer mestrar uma Masmorra de Quebra-Cabeças: dicas e procedimentos para quebra-cabeças agradáveis - texto de Direct Sun

 

Título original: "So you want to run a Puzzle Dungeon: Tips and procedures for pleasant puzzling"
Escrito originalmente por Direct Sun no seu blog intitulado "Direct Sun Games" em 7 de fevereiro de 2022. Grifos, formatação e links do original foram mantidos.
Traduzido por Felipe Tuller.

Eu tive a chance de mestrar minha masmorra de quebra-cabeça, Aberrant Reflections, para o Plus One Exp. Foi o máximo. Vou fazer referência à linha do tempo das filmagens do jogo para que você possa ver as partes mencionadas. Pule para 2:46:27 se quiser uma retrospectiva do jogo e discussão de design. 

Aviso: As coisas no vídeo não acontecem exatamente como eu descrevo no texto. Deixa rolar.

O que é uma Masmorra Quebra-cabeça?

Mark Brown, do Game Master’s Toolkit1, tem uma série excelente sobre quebra-cabeças de Zelda.  Os vídeos valem uma assistida, mas vou parafrasear aqui.

Uma masmorra de quebra-cabeça é uma experiência polida semelhante a resolver um cubo mágico pelo lado de dentro. As masmorras não são apenas um recipiente para os quebra-cabeças, mas o recipiente em si é um quebra-cabeça. Completar essas masmorras requer uma mistura de raciocínio espacial e navegação em um cenário tridimensional complexo.

Esta última parte deve soar familiar. Fazer com que os jogadores reflitam sobre o ambiente ao seu redor é um clássico de um bom design de masmorra. Pode não ser chamado pelo nome nos artigos do "Jaquaying the Dungeon" de The Alexandrian, mas é exatamente isso que Caverns of Thracia encoraja com seus andares famosamente interconectados.  

Masmorras de quebra-cabeças têm um monte de coisas rolando:

  •     Recontextualização de áreas previamente visitadas
  •     Subseções com seus próprios temas e histórias
  •     Itens-chave e aprimoramentos2
  •     Ensino incremental de novas mecânicas


Então, como você garante a mesma experiência polida, de jogo de vídeo, de masmorra de quebra-cabeça em jogos de mesa? 

Não sobrecarregue os jogadores

45:32
"Vocês chegam numa sala circular com caixões de pedra. No centro da sala, está uma laje de pedra a cerca de 3 metros de altura. Pairando acima da laje há uma chave."

Aqui está uma descrição composta por algumas frases sobre as principais características da sala. Os jogadores podem tomar decisões sobre o que gostariam de investigar e interagir. Eles podem perguntar sobre os caixões. Você diria a eles como as tampas dos caixões foram removidas e ossos quebrados jaziam sob elas. A parte importante aqui está no final. Uma investigação mais aprofundada revela que esses ossos foram roídos por algo que ainda pode estar nos arredores.

Os jogadores podem perguntar sobre a chave flutuante e você diria a eles como ela é roxa e parece ser feita de ferro forjado e flutua imóvel. A parte importante aqui está no final, já que logo ficará claro que a chave não está exatamente flutuando sozinha.

  •     Descreva as coisas que seriam imediatamente aparentes para os personagens dos jogadores.
  •     Deixe que os PJs investiguem cada coisa e então você pode entrar em mais detalhes.
  •     Deixe as coisas importantes para o final.

Reitere as coisas importantes

Você é os olhos, ouvidos e todos os outros sentidos dos jogadores. O árbitro3 tem conhecimento total da masmorra, mas os jogadores não. A pior coisa que pode acontecer em uma masmorra de quebra-cabeça é que os jogadores não tenham a informação que deveria ser óbvia para seus personagens. Este tipo de masmorra vai desafiar mais seus jogadores do que seus personagens. Você não quer que eles tomem decisões baseadas em erros de tradução do árbitro.

As coisas podem andar rápido em um jogo e os jogadores podem não ouvir uma descrição ou podem esquecê-la. Eles podem ter perdido algo importante que faria com que eles tivessem agido de outra forma. Então, descreva novamente. 

48:22
Thrag, o acólito, decide dar a volta na sala e olhar melhor os caixões.

"Você se move de caixão em caixão. Todos eles estão abertos e você vê tesouros dentro: anéis e colares e coisas que brilham. Enquanto isso, a chave flutuante permanece imóvel no centro da sala, brilhando sob a luz da sua tocha."

Aqui eu disse ao jogador o que eles veem e reiterei as partes importantes da área no final para mantê-las na mente dos jogadores.

Não se preocupe se está sendo óbvio. Não se preocupe se revelar segredos. A informação é mais importante. É muito difícil estragar quebra-cabeças para os jogadores descrevendo coisas que seus personagens notariam.

  • Não retenha informação.
  • Repita as partes importantes.
  • Deixe as coisas importantes para o final.

"Você tropeça na coisa importante"

1:26:20
Jogador: "Nada aqui. Nós saímos da sala."
Árbitro: "Você tropeça em algo no chão que não consegue enxergar"

Apesar de seus melhores esforços, os jogadores irão perder algumas informações. Neste caso, os jogadores estavam prestes a sair da sala sem interagir com um item importante. Eles sabiam que o item estava lá, mas o desconsideraram. Eles assumiram erroneamente que não seriam capazes de tocar ou interagir com o item, então não tentaram.

Eu poderia ter deixado os jogadores sairem da sala e vagarem pelo resto da masmorra até que talvez voltassem para esta sala. Mas por que eles o fariam? Eles já tinham se convencido de que não havia nada de interessante aqui e eles não estavam pegando minhas dicas indicando o contrário.

Deixar os jogadores frustrados e vagando não seria legal para ninguém e não havia razão para isso. Os jogadores já tinham descrito as suas personagens vasculhando a sala. É lógico que eles teriam esbarrado neste item chave eventualmente. Eu só não havia descrito isso como acontecido. Então eles esbarraram na coisa importante ao saírem.

  • Não puna os jogadores por perderem algo que seria óbvio para seus personagens. 

Desenhe para os jogadores

Não sinta que você precisa encontrar as palavras certas para explicar tudo perfeitamente. Em masmorras de quebra-cabeça podem existir algumas áreas complexas com aspectos diversos. Use e abuse de ilustrações e folhetos. Uma imagem faz maravilhas. Ou então só desenhe bonecos palito e quadrados para que você possa apontar para as coisas. Informação é algo vital.

  • Mostre aos seus jogadores com o que eles podem interagir através de folhetos e desenhos.

Esteja aberto a novas ideias

2:42:16
Jogador: "Eu tento abrir a porta."
Árbitro: "Thrag corre para a porta e a empurra, mas ela não se move."
Jogador: "Eu puxo."

O que diferencia esta masmorra de quebra-cabeça de mesa analógica das masmorras de videogame de The Legend of Zelda? Os jogadores não estão limitados pelo código do jogo. Eles podem tentar qualquer coisa. Deixe-os. O árbitro deve recompensá-los por compreender seu ambiente e deve estar aberto a soluções alternativas para problemas.

  • Deixe os jogadores quebrarem os quebra-cabeças em vez de resolvê-los.

Deixe os jogadores falharem

Já que os jogadores podem fazer qualquer coisa, eles também podem tornar quebra-cabeças insolúveis. Em The Seers Sanctum4, existem lentes de vidro que são necessárias para resolver o quebra-cabeça final. Os jogadores podem quebrar as lentes. Isso abre futuros ganchos de quests5 à procura de especialistas que possam reparar os itens-chave. Os jogadores podem ganhar a atenção de um grupo de aventureiros rivais em sua quest.

O grupo poderá nunca resolver o quebra-cabeça final. Tudo bem deixá-los falhar. Finalize em grande estilo e passe para outras aventuras. Os jogadores vão ficar queimando os miolos sobre o que poderão ter perdido. Eles poderão perguntar a você, o árbitro, o que poderiam ter feito de forma diferente. Resista ao desejo de contar a eles e esta não será a última vez que eles falarão sobre a masmorra de quebra-cabeça que ainda está lá fora, com seus segredos guardando tesouros incontáveis. 

12 abril, 2024

Impacto - Texto de Arnold Kemp

 Título original: "Impact" Escrito originalmente por Arnold Kemp no seu blog intitulado "Goblin Punch" em 05 de outubro de 2017

Traduzido por Felipe Tuller. 
Links originais foram mantidos. 
 
Então, você está jogando D&D e está lutando contra alguns orcs. Todos os orcs estão armados com espanadores de pena, então na verdade eles são incapazes de machucarem qualquer um. E o seu Mestre não premia XP por combate, então eles dão 0 de XP ao serem mortos.

Esse combate é uma perda de tempo. Você está apenas rolando dados até que os orcs morram.

O encontro é uma bosta porque o encontro não causa impacto.

Impacto: a habilidade de alterar permanentemente o jogo. O oposto de impacto é "fluff". *1

Impacto se relaciona com o quanto seus jogadores se importam. Se ninguém está dando atenção ao resultado deste encontro, é difícil se divertir. Eu acho que muitos Mestres cometem o erro de criar encontros de baixo impacto.

Vou começar falando sobre encontros de combate, mas boa parte disso aqui também se aplica a encontros não relacionados a combate.

Como aumentar o impacto

Esgotar recursos

Sim, esgotar magias/PVs/poções é uma forma de impacto. É baixo impacto, quase que por definição. Podemos fazer melhor.

Em muitas aventuras publicadas, as lutas são fortemente inclinadas em favor dos PJs, que normalmente não precisam gastar muitos recursos para vencer. O único motivo para rodar encontros como esse é fazer os jogadores se sentirem bem/poderosos (não é algo que eu recomendo que você crie de caso pensado - isso acontece por si só, quando é algo merecido) ou para ensinar as regras a eles (e há maneiras melhores de fazer isso do que gastar o tempo de todos com encontros no estilo "fluff").

Matando personagens

Para a maioria dos jogadores, essa é a coisa mais impactante que pode acontecer. É também meio merda quando acontece. Nós podemos conversar sobre o quanto de letalidade é desejável em outra postagem, mas meu ponto é o seguinte...

Alto risco faz com que as pessoas prestem atenção. Por esse motivo, combates difíceis são necessariamente algo de alto impacto.

Caros leitores de fora da OSR: essa é uma das razões pelas quais o pessoal da OSR está sempre advogando a favor de combates potencialmente letais. Não porque nós gostamos de criar novos personagens, mas porque os combates são mais significativos. É a mesma razão pela qual muitos Mestres de mesas "sandbox" aceitam jogadores depondo reis, queimando cidades inteiras e basicamente só criando uma grande confusão.

Eu não vou argumentar a favor de que você deva tornar todos os seus combates algo brutalmente difícil. Combates fáceis tem o seu lugar. Mas se você vai criar um combate fácil, ele precisa ser impactante de alguma outra maneira (veja também: o restante desta postagem).

É perfeitamente possível que um combate de alta letalidade mantenha todos atentos, estressados e entediados. Ficar preso numa sala com um Wight, sem nenhuma maneira de feri-lo, rolando dados por 20 minutos enquanto todos os seus personagens morrem inevitavelmente (isso não é diferente dos orcs com espanadores, na verdade).

Se você se encontrar em um combate de baixo impacto, desconsidere-o. Na última vez que joguei D&D, meus jogadores emboscaram três clérigos velhinhos (não mágicos, nível zero). O combate durou 30 segundos, porque eu simplesmente deixei que os jogadores narrassem como eles venceram.

Mutando a ficha de personagem

Quando eu digo "ataque todas as partes da ficha de personagem", e a isso que me refiro.
 
Esta é uma categoria bem ampla. Sim, ela inclui mutações de fato. Este sou eu lhe dizendo que dar um Machado de Mutação ao orc saqueador é uma excelente ideia.
 
Você pode destruir itens (monstros da ferrugem), drenar níveis (Wight), etc. (Anúncio de utilidade pública: efeitos negativos dessa magnitude devem ser telegrafados, e os jogadores devem ter a chance de evitar o combate. Não embosque os jogadores usando Wights).
 
Você também pode mutar itens, mutar feitiços, transformar moedas de ouro em moedas de cobre, transformar moedas de cobre em moedas de prata, cegar um PJ permanentemente, dar a um jogador a habilidade de enxergar no escuro permanentemente, bagunçar seus atributos, bagunçar suas perícias, roubar um item de seu inventário, queimar todos os pergaminhos de seu inventário com fogo de dragão, trocar seu sexo, amaldiçoá-los.

E lembre-se, todos esses efeitos devem ser telegrafados antes de serem jogados em cima do grupo. A ideia é fazer com que o grupo dê atenção ao resultado ao subir as apostas, então isso não funciona se eles não souberem que as apostas subiram.

Anjos que podem converter os personagens à força para a sua religião. Já que demora alguns "acertos" antes que os PJs sejam convertidos, eles têm tempo para fugir (que é o objetivo dos PVs, afinal).

Ninfas que convencem os PJs a viver com ela por dois anos também podem ter um grande impacto no jogo. Os jogadores devem conhecer os riscos antes de procurar uma ninfa.

E todo mundo sabe que se deve evitar gurgans. Eca.
 

"Eu vasculho o corpo"

É, o básico do básico. Eu sei.

DICA DE MESTRE: aumente o engajamento fazendo com que os inimigos utilizem os itens legais em combate; não deixe-o no bolso deles para que eles descubram no fim da luta.

Não precisa nem ser algo mágico. Tipo, dê a um dos orcs um chicote com uma garra de águia na ponta e um crânio de água na empunhadura. Foda pra caralho.

Ou então eles têm poções malucas. Perca 1 ponto de CON permanentemente para entrar numa super-fúria. Faça com que pelo menos um orc beba a poção durante o combate, com mais frascos visíveis dentro do casaco dele para que os jogadores saibam o que receberão quando vencerem.

Ou então, tipo, da próxima vez que os jogadores critarem*2 o orc, a algibeira de moedas do orc rasga e moedas saem rolando pelo chão (além dos efeitos usuais de um crítico). Mostre aos jogadores o quê está em jogo.
 

Ganhando XP

Sim, esse tipo de coisa existe.

Quando eu usava XP para quests nas minhas mesas de Pathfinder, eu costumava dar um panfleto aos jogadores com todas as quests disponíveis, com todas as recompensas associadas. Eu meio que reviro os olhos pra esse tipo de coisa hoje em dia, mas isso cumpria o objetivo de mostrar o quê estava em jogo.
 

Relacionar com outras partes do mapa

É a isso que me refiro quando eu digo "encontros aleatórios não significam encontros desconexos".

Talvez o orc super bem vestido seja o filho do líder e peça para ser resgatado quando se render (encontros aleatórios precisam se conectar com coisas foras de si mesmas).

Talvez eles estejam salvando a vida do rei. Se forem derrotados nesse combate, o rei será assassinado.

Essa é também uma oportunidade para os jogadores mostrarem os seus valores. Deixe que eles tenham a possibilidade de alterar o mapa de jogo, e garanta que eles saibam disso.
 

Informação

Talvez o simples fato de um dos orcs estar no castelo signifique que alguém botou ele pra dentro... mas por quê?

Talvez um dos orcs tenha um mapa incompleto de uma masmorra próxima.

Talvez os orcs prometam lhe dar a senha para a Torre do Wyvern se você os deixar fugir.

Os orcs tem suas mãos tatuadas de preto, indicando que eles treinaram em Ungra, especializados em matar magos, e foram contratados por um preço bem caro.

Um dos orcs está carregando ferramentas de ladrão e está coberto de queimaduras de ácido bem recentes (um cadeado próximo possui armadilhas de mangueiras com ácido).
 

Fluff é aceitável

Não há nada de errado num combate divertido. Fluff tem o seu lugar.

Descanso: Combates fáceis podem ser um ótimo descanso depois de uma matança.

Delírio de poder: Talvez você esteja jogando com crianças de dez anos e o aniversariante do dia se sentiria feliz com uma espada mágica.

Ambiente: Um corpo sendo devorado por fantasmas famintos pode estabelecer bem o clima (nenhuma informação útil foi adquirida, nenhuma interação real exceto observação).

Objetivos pessoais: Não há nenhum benefício nisso, mas talvez um dos PJs jurou humilhar todos os bardos que cruzasse seu caminho. Que seja. É importante para o conceito do personagem.

Comédia: Lutar contra goblins bêbados no meio de uma manada de porcos.

Lembre-se apenas de que você pode aumentar o impacto sem aumentar a dificuldade. Talvez dê a um dos goblins um ferrete fervendo. Causa o mesmo dano, mas agora os personagens têm as iniciais "QQ" permanentemente marcadas em seus traseiros.
  • Não muda o jogo
  • Ainda pode ser interessante (por exemplo, você encontra o homem-pavão sendo devorado por fantasmas famintos; ele não tem nada de interessante para dizer ou lhe dar).
  • Pode ser interessante para uma "ego trip".

Usando impacto de forma errada 

Impacto não é a mesma coisa que diversão. Use-o para fazer os jogadores reagirem. Talvez eles estejam com medo de morrer e detestem combates mortais. Talvez eles queiram ser heróis e respondem muito bem a heroísmos cívicos, tais como salvar reis.

Então fique atento ao impacto na próxima vez que jogar um grupo aleatório de 3d6 goblins contra o seu grupo. Não deixe que se torne apenas "fluff".

 
*1 Em sentido literal, "Fluff" significa "algo fofo", como penugem de ovelha ou o material utilizado para estofar ursinhos de pelúcia. No contexto do RPG de mesa, "fluff" pode ser entendido como uma metáfora para algo supérfluo, não essencial ou algo que serve apenas para preencher espaço vazio.
*2 "Crit on the orc" no original. Optamos por traduzir pelo neologismo "critar", comum no vocabulário dos RPGs. Se refere à mecânica de "acerto crítico".

Lista para masmorras - Texto de Arnold Kemp

 Título original: "Dungeon Checklist" Escrito originalmente por Arnold Kemp no seu blog intitulado "Goblin Punch" em 18 de janeiro de 2016

Traduzido por Felipe Tuller. 
Links originais foram mantidos. Alguns termos importantes foram destacados em negrito.
 
Às vezes eu crio masmorras. Hoje eu escrevi uma lista de coisas para colocar numa masmorra. Os primeiros itens são bastante óbvios, mas ainda é bom enumerar seu uso.

Como usar essa lista

Leia isso uma vez antes de criar sua masmorra. E então leia de novo quando terminar, para ter certeza que você pegou tudo.

1. Algo para roubar

Em primeiro lugar, tesouro dá aos jogadores uma razão para adentrar a masmorra. Pensando em metagame, tesouro é dinheiro, dinheiro é XP, e XP está ligado à ideia de progressão de personagem. É o principal impulsionador do sistema.

Dois ponto: primeiro, lembre-se de que tesouro não precisa ser tesouro. Ele pode ser:
  • Trecos brilhantes, como velhas moedas sem graça ou o sutiã de latão com joias da rainha zumbi.
  • Conhecimento, como onde encontrar mais tesouro, ou informação que você pode utilizar para chantagear o rei. Ou até mesmo um sábio que pode responder a uma única pergunta com honestidade.
  • Amizade, como um verme púrpura amoroso que segue você por aí e te protege quando ele está com fome ou um pouco entediado. Ocasionalmente, ele deixa sacos de ovos espalhados para que você os fertilize (e fica nervoso se você não sentar em cima deles por pelo menos uma hora).
  • Mecadorias, como uma carroça cheia de chá (valendo 10.000po). Quando eu distribuo grandes pacotes de mercadorias como tesouro, eu dou metade do XP agora, e a outra metade do XP quando eles são vendidos (eu simplesmente adoro a ideia de uma campanha mercantil).
  • Territorial, como uma torre que os jogadores podem reivindicar como sua, ou um apartamento numa área nobre da cidade (e as chances de serem apunhalados enquanto dormem diminuem drasticamente).
  • Trecos úteis para aventuras, como uma espada mágica, pergaminho de borrar o sol ou um paraquedas.

Segundo, tesouros também contam histórias. Cubra seu tesouro em símbolos religiosos, consagre-o com sangue de troll. Não deixe que suas moedas sejam moedas!

2. Algo para matar

Isso é bem óbvio. É claro que há coisas ameaçadoras na masmorra. Tem que haver algum desafio caso contrário não é uma masmorra. O jeito mais simples de fazer isso é usando coisas que estão tentando te matar (sim, existem masmorras sem monstros baseadas em armadilhas. Elas são legais, mas é por isso que essa lista está escrita com lápis e não em pedra). Há muitas maneiras de tornar os combates com os monstros, mesmo os mais básicos, algo mais interessante.

Lembre-se também que as masmorras contam suas histórias através de substantivos. A história da masmorra normalmente é contada através da escolha dos monstros (por que usar orcs quando você pode usar versões degeneradas e canibais dos anões que originalmente habitavam o local?) e da descrição destas criaturas (um zumbi-coberto-de-craca, um golem de ferro carbonizado por fogo de dragão, os retalhos de armadura élfica que os goblins estão vestindo, o rifle-cajado élfico que, por algum motivo, um dos goblins possui).

Exemplos: 2d6 orcs, 3d6 homens-de-lama.

3. Algo para matar você

Masmorras são criadas para serem vencidas. É por isso que nós não as enchemos com obstáculos inescapáveis (pedras caem, todo mundo morre) ou barreiras impenetráveis (sinto muito, a masmorra inteira está envolvida numa cúpula de adamantina, vocês não conseguem entrar). 

PORÉM, masmorras precisam passar a sensação de que foram criadas para serem invencíveis. É importante sentir que isso não é só uma pista de boliche onde o Mestre coloca os pinos para os jogadores derrubarem. Você precisa ter elementos mortais na sua masmorra mortal para que ela passe a sensação de ser mortal.

Siga apenas estas duas regras importantes. Tente seguir pelo menos uma delas.
  • Rotule seus trecos mortais como tal. Um dragão dormindo. Uma porta barricada pelo lado dos jogadores com uma placa avisando sobre aranhas mortais. Essas coisas já se parecem mortais de longe.
  • Uma chance de escapar. Talvez o dragão não caiba nos túneis menores ao redor de seu covil. Talvez a mantícora esteja acorrentada a uma pedra.

Ambos os pontos servem à mesma função: eles permitem que os jogadores escolham suas próprias batalhas, algo que você não consegue fazer em um jogo linear "nos trilho". Acho que é por isso que muitas pessoas da OSR odeiam lutas contra chefões: porque elas são a única batalha na masmorra que é obrigatória.

Monstros horríveis que podem ser evitados dão agência aos jogadores e permitem que eles sejam arquitetos de seu próprio fim.

Observação: eu acho que todos os combates deveriam ser escapáveis. Às vezes com algum custo (deixando para trás comida, ouro, talvez um PJ ou um auxiliar morto). Na minha experiência, PJs se matam com frequência suficiente mesmo que os inimigos nem saiam das salas nas quais estão.

Além disso, colocar monstros "invencíveis" na sua masmorra também permite que sua masmorra seja auto regulável. O grupo de nível 1 irá apenas passar de fininho pelo dragão, enquanto o grupo de nível 6 talvez considere lutar com ele para poder roubar o tesouro no qual ele está dormindo em cima. E, simples assim, uma masmorra se torna apropriada para grupos de nível 1 E TAMBÉM para grupos de nível 6 (e essa é outra razão pela qual eu acho que jogos OSR têm uma ampla gama de "níveis adequados" - é tão fácil quanto esperado que os jogadores fujam das batalhas que eles não podem vencer).

4. Caminhos alternativos

Caminhos alternativos permitem que grupos diferentes experienciem a masmorra de formas distintas. É um randomizador, similar ao que você conseguiria se pedisse salas de masmorra a um gerador de números aleatórios. E ele impede que você (o Mestre) fique entediado.

Agência do jogador. Os jogadores podem escolher o caminho para o qual estão mais preparados. Um grupo com 2 clérigos pode escolher o túnel infestado por zumbis, e o grupo com apoio aéreo pode aterrissar no pátio. Isso também ajuda a masmorra a ser um pouco auto-ajustável. Jogadores mais confiantes podem enfrentar a porta dianteira, enquanto grupos de níveis mais baixos se esgueiram ao redor pelo lado de fora.
 
Isso permite que os grupos evitem salas que eles não gostam. Parte da filosofia da OSR (do modo como eu enxergo) é a capacidade de evitar combates. Se um grupo não quer lutar contra uma sala cheia de esqueletos arqueiros enterrados nas paredes (especialmente depois que eles foram cegados na última sala) eles podem recuar e encontrar outra entrada. É uma opção que eles tem. 

A última razão para ter múltiplos caminhos é permitir a mestrificação de masmorras*1. Eu não quero dizer "mestragem" de jogo. Quero dizer que, à medida que os jogadores aprendem mais sobre a masmorra, eles se tornam melhores em se aproveitar de sua geografia. Eles podem atrair o verme de carniça para a armadilha de alçapão que eles sabem que está lá. Eles podem recuar para um caminho em loop ao invés de recuar para salas inexploradas (uma tática sempre perigosa).

Ao mesmo tempo, não inclua caminhos aleatórios só porque sim. Quanto mais caminhos você adiciona, menos linearidade haverá na sua masmorra. E às vezes você quer linearidade, principalmente quando isso envolve ensinar coisas aos jogadores, ou dar pistas. Às vezes você quer mostrar aos jogadores o corredor estranhamente limpo antes deles esbarrarem com o cubo gelatinoso. Talvez você queira que eles encontrem os zumbis com mãos de gancho antes de encontrarem a sala das mãos rastejantes ambulantes.

Não há nada de errado com um pouco de linearidade se você estiver acrescentando isso por alguma razão. Eu ainda acho que uma masmorra fortemente ramificada deva ser a suposição padrão, mas seções lineares de uma masmorra são um pecado venial, e não um pecado mortal.

5. Alguém para conversar

As pessoas esquecem esse ponto, porém este é o que eu mais me importo. Me importo tanto para usar caps lock: TODA MASMORRA PRECISA TER ALGUÉM PARA CONVERSAR. É um jogo de interpretação de papéis. NPCs são a maneira mais simples e mais fácil de dar profundidade à sua masmorra. É fácil porque todo mundo sabe como interpretar um goblin prisioneiro genérico e tem uma boa ideia de quais informações/serviços aquele goblin prisioneiro pode oferecer. E isso traz profundidade porque há diversas formas de como o grupo pode usar o goblin prisioneiro. Não há praticamente nenhuma encheção de linguiça - você não precisa inventar novas mecânicas e praticamente não gasta espaço ao escrever "há um goblin numa jaula. Seu nome é Zerglum e ele foi preso por seus colegas por ter libertado os ratos".

O problema é que muitas masmorras são cofres de tesouros, tumbas e minas abandonadas. A única criatura que normalmente se encontra nesses locais são mortos-vivos, golems, limos e vermes com cadeias alimentares ambíguas. Nenhum desses é conhecido por serem tagarelas. Então, aqui estão algumas opções:
  • Grupo de aventureiros rivais.
  • Goblins nunca precisam de uma justificativa.
  • Efeito mágico, como um feitiço de Boca mágica tagarela ou algo assim.
  • Ninfa do cemitério.
  • Fantasmas. Crie um do tipo simpático. Todo mundo espera que eles sejam babacas.
  • Uma cabeça de ghoul, apoiada numa prateleira. Ela consegue falar se você soprar pelo buraco do pescoço.
  • Um velhinho preso em uma pintura. Se comunica através de pinturas.
  • Um demônio preso em um espelho. Se comunica repetindo as frases de quem fala com ele.
  • Uma máquina de guerra antiga aprisionada por uma mina em estase. Procura inimigos que morreram há milhares de anos atrás, irá se autodestruir quando descobrir que perdeu a guerra.
  • Considere dar feitiços como Falar com os mortos ou Falar com fechaduras aos seus jogadores. Masmorras normalmente possuem essas coisas.
  • Súcubo demoníaca que passou os últimos 1.000 anos em uma cama, aprisionada por fios de prata tecidos em círculos no lençol.
  • Bárbaros montando pterodáctilos que estão saqueando o local.
  • Um mago deslocado temporalmente, preso em um paradoxo enquanto explorava o local. Reseta a cada 3 minutos.

6. Algo para experimentar

Além de algo que provavelmente vai descer o cacete no grupo, eu acho que esse ponto é o mais OSR da lista.

São coisas inexplicáveis, o estranho e o desconhecido. E não quero dizer desconhecido no sentido de que uma poção não identificada é desconhecida. Quero dizer algo que introduza uma nova camada no jogo.
  • Uma sala com duas portas de tamanhos diferentes. Tudo que é colocado na porta pequena emerge da porta grande com o dobro do tamanho e vice-versa. Tudo que atravessa a mesma porta duas vezes na mesma direção (aumentado duas vezes, diminuído duas vezes) recebe consequências terríveis. 
  • Um pedestal. Qualquer coisa colocada sobre ele se torna algo oposto (então, o oposto de uma espada é um machado, mas qual é o oposto de uma banana?)
  • Um esqueleto de metal. Se um crânio é colocado em cima dele, Falar com os mortos é conjurado sobre ele.
  • Poços dos desejos que são portais para outras pequenas lagoas da masmorra. Aonde o portal leva é determinado por qual item você joga no poço antes de entrar nele. Moedas de cobre, moedas de prata, moedas de ouro, gemas e flechas levam a lugares distintos.
  • Uma máquina que transforma produtos processados em matéria bruta, e matéria bruta em munições.
  • Um relógio solar que controla o sol.
  • Um golem-barco que foge de barulhos altos. Você pode direcionar seu movimento ficando na parte de trás e gritando.
  • Dois buracos numa parede. Se dois membros são colocados nos buracos, eles são trocados. Se apenas um membro é colocado no buraco, ele é amputado. Pode ser utilizado para acoplar novos membros em pessoas amputadas.

Há uma coincidência aqui com itens mágicos. Também há coincidência com coisas não-mágicas. Também há uma coincidência com combates, porque alguns combates podem ser como quebra-cabeças, ou podem depender de novas regras/condições de vitória.

Combate, para jogadores experientes, em sua maioria, é um problema já resolvido. Trecos estranhos são importantes porque dão aos jogadores um problema não resolvido.

Jogadores sabem como tirar melhor proveito de seus ataques e habilidades. Claro, você pode sacudir um pouco as coisas e forçá-los a pensar em táticas diferentes. Mas, na maior parte dos casos, eles já sabem como utilizar seus personagens da melhor forma. Afinal de contas, eles já vem praticando isso por vários níveis de personagem.

(é importante deixar que seus jogadores pratiquem as coisas nas quais eles são bons, ou seja, combater com seus personagens, mas também é importante jogar umas chaves inglesas nas engrenagens).

Trecos estranhos seguem suas próprias regras. De uma hora para outra, os jogadores não sabem como resolver um tal problema e eles têm que descobrir de novo.

Pontos extras se for algo que tem o potencial de desbalancear o seu jogo. Nada dá a um jogador mais agência do que a habilidade de tirar completamente o seu cenário dos trilhos (não que você precise ir tão longe).

Mais pontos extras se for algo que à primeira vista provavelmente irá machucar os jogadores, mas que pode ser usado para seu benefício uma vez que eles entendam como aquilo funciona.

Uma última mordomia: isso dá aos personagens de nível 1 a chance de serem jogadores de nível 10. Qualquer pessoa pode colocar um braço num buraco na parede, e qualquer pessoa pode deduzir o que aquilo faz. Trecos estranhos normalmente apresentam ameaças e recompensas que independem do nível do grupo *2.

7. Algo que os jogadores provavelmente não irão encontrar

Este ponto talvez seja controverso. Por que colocar coisas na sua masmorra que seus jogadores não irão encontrar?

Primeiro, você não precisa colocar muitas coisas na masmorra. Apenas algumas palavras aqui e ali para recompensar os jogadores que são mais minusciosos. "Dentro do estômago do vorme púrpura há uma bolsa do infinito cheia com 1.000 galões de ácido estomacal de vorme púrpura". Ou "o capitão pirata tem uma barra de ouro escondida em sua perna postiça, envolvida em feltro para que não fique retinindo". Não é como se você estivesse criando várias salas legais que ninguém vai apreciar (que dizer... às vezes eu faço isso).

Eu acho que é importante esconder coisas porque há um prazer sincero em explorar e testar os limites. Se todas as coisas na masmorra são óbvias, por que se importar com o que está no fundo do poço? Há algo interessante enterrado debaixo de toda essa lama? Jogadores que não tem tempo ou recursos para explorar 100% a masmorra (e eles não deveriam ter) sempre sairão com uma sensação de enormidade, de que sempre haveria mais a ser encontrado.

Claro, completude é uma sensação boa, mas maravilhamento também é.

Eu gosto de recompensar pessoas que são boas no jogo. E ser bom em encontrar coisas (pensando em onde elas podem estar, explorando estes locais apesar dos riscos envolvidos) é uma das formas que o jogador pode ser bom em D&D. Eu já escrevi sobre isso antes.

Esse ponto deve ser um espectro. Algumas coisas (a maioria das coisas) devem estar à céu aberto. Algumas coisas devem estar escondidas por detrás das cortinas. E algumas coisas devem estar profundamente enfiadas nas dobras da masmorra.

Então, sim: da próxima vez que você decorar uma sala com um mural de um rei derrotado prestando tributo ao seu conquistador, coloque de fato um baú com tesouros nas paredes atrás da pintura de um baú com tesouros (eu mestrei essa masmorra três vezes e ninguém encontrou ele. Eu fico animadinho toda vez que eu descrevo isso para os jogadores).

Também há esqueletos mortos-vivos enterrados na parede atrás das pinturas de esqueletos. Ninguém os nunca os encontrou também. Mas, um dia, um grupo com a dose certa de ganância, esperteza e paciência irá encontrá-los, e isso vai ser incrível.

*1 "dungeon mastery" no original. Aqui o autor faz uma brincadeira com o termo "Dungeon Master", ou "DM", um termo comum em inglês para se referir ao "mestre do jogo" dos RPGs.
*2 "level-agnostic" no original. Uma brincadeira com o termo "system-agnostic" ou "independente do sistema", que é utilizado para dizer que uma aventura ou algum material de RPG que não tem o seu uso restrito a um sistema de RPG específico.

09 março, 2024

RPGs são sobre "falhar" - Texto original de Felipe Tuller

Uma palavrinha antes de começar:

Salve, salve, pessoal! É com muito prazer que venho compartilhar com vocês o primeiro texto original do blog! Ele foi escrito por mim ao longo de uma semana péssima na qual minha internet caiu e ficou fora do ar por anos. Em meio a esse pequeno apocalipse digital, nas horas nas quais eu não estava trabalhando (ou tentando convencer os atendentes de telemarketing de que os técnicos da internet nem sequer tinham aparecido no meu endereço), eu estava pensando avidamente nos meus projetos de RPG que foram obrigados a ficar estacionados: nas mesas online que tiveram que ser canceladas, nas gravações dos episódios do Tomos Revelados que foram adiadas... e então  talvez movido pela força do ódio em relação à minha (ex) provedora de internet  eu resolvi botar a mão na massa mesmo assim: comecei a escrever um texto sobre minhas reflexões sobre RPG. O texto a seguir foi o que nasceu naquela semana maldita! O formato ficou bem no estilo "ensaístico", levantando algumas ideias e reflexões, mais com a intenção de gerar um debate a partir do meu ponto de vista do que de fato "cravar" uma verdade absoluta.

Além disso, um spoiler bacana: esse texto vai ser publicado (em inglês) na revista Knock! O editor da revista, Josh MCcroo, é um cara muito gente boa (você deveria seguir ele no twitter: ele deve lançar um sistema em breve que aprece incrível, que usa cartas de Tarot ao invés de dados!) Josh foi super solícito, cuidadoso e respeitoso com o meu texto. Essa versão abaixo já conta com algumas das modificações que ele sugeriu (em termos de conteúdo, o que rolou, basicamente, foi que 80% das piadinhas sem graças e das digressões foram cortadas hahah).

Sem mais delongas, aqui vai o texto. Espero que gostem!

 

RPGs são sobre "falhar"

Imagine a seguinte situação: Melion, o elfo, tem 3 pontos de vida. Ele está num castelo em ruínas sendo perseguido por cultistas. Melion corre sozinho, sem fôlego, desviando-se de obstáculos da dungeon até que, de repente, ele vê a saída do outro lado de um abismo. É tudo ou nada. Melion olha para trás, já ouvindo os gritos insanos dos cultistas se aproximando. Ele respira fundo, dá um salto e... pula desajeitadamente, caindo no abismo. Tudo fica escuro. Depois de alguns segundos de desorientação... Melion, o elfo, tem 2 pontos de vida. Ele se encontra em um castelo em ruínas sendo perseguido por cultistas. Melion corre sozinho, sem fôlego, desviando-se de obstáculos da dungeon até que, de repente, ele vê a saída do outro lado de um abismo...

Se você pensou "Nossa, igual um videogame!", você está absolutamente certo! Deixando de lado minha tentativa de fazer piada, permita-me resumir essa cena: Melion, o elfo, falhou ao pular sobre um precipício. Ele cai no abismo, perde "PVs" e volta ao ponto de partida. O conceito de "reiniciar" ou "vidas extras" é algo bem comum nos videogames. A ideia por trás dessa mecânica é simples: "Você falhou! Tente novamente." No entanto, a menos que você esteja jogando um RPG cômico no estilo de Paranoia, o caso do elfo que acabei de descrever certamente geraria protestos e cara feia de todos à mesa.

Mas e se eu dissesse que os jogadores de RPG de mesa fazem coisas semelhantes o tempo todo em suas mesas? Como toda nova forma de mídia ou arte, os RPGs sofrem por serem tratados e interpretados como se fossem análogos a algo que já existe. Foi o mesmo com a fotografia e o mesmo com o cinema. Durante o surgimento do cinema, por exemplo, os primeiros filmes narrativos se pareciam mais com um "teatro filmado". Levou tempo para os cineastas perceberem que a característica fundamental de sua forma de arte não estava em copiar o que era feito no teatro, mas em aproveitar as forças de seu próprio meio (neste caso, o potencial da "edição") para levar sua forma de arte ao seu ápice.

Em seu ensaio intitulado "Regra das Três Pistas", Justin Alexander diz que o problema ao preparar enredos para um cenário de RPG é que isso se parece muito com tentar programar um jogo de computador: muitos Mestres, influenciados pela grande quantidade de filmes e videogames em que uma experiência narrativa linear era o tema central, acabam tratando seus RPGs como se fossem um meio também dominado pela forma da narrativa linear. Portanto, diz Alexander, esse tipo de Mestre acaba "programando respostas predefinidas", como alguém criando um jogo de computador. Este é um dos maiores problemas que os RPGs enfrentam hoje: a noção de que os RPGs são uma forma de "contar histórias", assim como os filmes. Que os RPGs precisam antecipar certas ações dos jogadores, assim como certos videogames fazem. E, já que são uma "história", é necessário ter um "roteiro", antecipar eventos e guiar os jogadores ao longo desta história previamente escrita, belamente costurada pelo Mestre. Isso não se parece justamente com o caso de um filme querendo ser um "teatro filmado"?

Desde a publicação do ensaio de Justin Alexander, acredito que avançamos muito nessa questão. A dica "Não force sua história nos jogadores, construa a história junto com seus jogadores durante o jogo" agora é muito mais difundida na comunidade do RPG. No entanto, acho que esse conselho não é suficiente. Além disso, ele acaba obscurecendo uma questão muito mais radical que considero essencial para nossa "forma de arte" (se é que podemos chamar assim): Os jogos no estilo RPG, como o nome sugere, são (surpreendentemente) um jogo. Qualquer tentativa de transformar os RPGs em uma forma de narrativa antes de ser um jogo será um equívoco. Dito isso, não estou criticando os chamados jogos "narrativistas". Pelo contrário: admiro muito este estilo de RPG precisamente porque um bom jogo narrativista usa suas mecânicas e dinâmicas para direcionar o grupo a um novo lugar, preparando um palco espetacular para os jogadores interpretarem de maneiras muito específicas.

Com isso, não quero dizer que os RPGs e os videogames não são bons canais para contar histórias, desenvolver narrativas e criar experiências compartilhadas. Muito pelo contrário: acho que ambos os meios são as formas mais radicais de se fazer isso. Meu ponto é que, por mais que a construção de uma narrativa seja algo intrínseco a um RPG, ela é produzida de maneira muito distinta de uma obra de ficção precisamente porque o ato de jogar vem antes de todo o resto. Enquanto tratarmos os livros de RPG como literatura ou livros de história, enquanto criarmos aventuras de RPG com a estrutura narrativa do cinema e com mecânicas de videogame, não estaremos extraindo todo o potencial desse meio.

(Eu não sou o tipo de pessoa que gosta de estragar a diversão alheia. De forma alguma estou dizendo: "Você deve jogar de determinada maneira porque o que você está jogando não é um RPG de verdade!" Essa é a graça dos RPGs: não há linha de código impedindo você. Vá em frente, faça o que quiser, jogue da maneira que parecer mais divertida. Quebre as regras do sistema!)

Sobre o que são os RPGs de mesa, afinal? 

Para mim, os RPGs são sobre "falhar". Em nenhum outro tipo de jogo sou capaz de falhar em paz. Os RPGs me permitem fazer isso. Olhe nosso exemplo inicial, por exemplo. O pobre elfo Melion, tentando pular sobre o abismo, teve sua falha negada, e toda a sua existência reduzida a uma paródia de Super Mario. Como jogador de RPG, acredito que um jogo que não respeita minhas escolhas (ou melhor, que não se preocupa com as consequências de minhas ações) está sempre caminhando para o desastre. Como jogador de RPG, gosto de acreditar que (1) sou livre para escolher como agir; e que (2) seja qual for o resultado de minhas ações, qualquer que seja a ação de meu personagem, o jogo apresentará consequências significativas. Nada mais, fora do RPG de mesa, pode unir harmoniosamente esses dois pontos.

Depois de cair do penhasco, um mestre de jogo mais complacente poderia pedir a Melion para fazer um teste de Sorte e  veja só!  ele acaba não morrendo afinal. Ele simplesmente cai no rio. Talvez Melion sofra um dano massivo pela queda, quebrando as pernas quando atinge a água. Pelos deuses, Melion poderia até mesmo morrer! Mas em uma boa sessão de RPG, até mesmo esse erro fatal teria criado ramificações emocionantes de uma maneira que não pode ser produzida em nenhum outro tipo de jogo. Por exemplo: Melion morre, mas o rio arrasta seu corpo diretamente para sua cidade natal, para o horror de seus parentes que o haviam avisado do perigo que espreitava no castelo abandonado no topo da colina. A partir daí, o Mestre poderia dizer que a vila de Melion nunca mais ajudaria os aventureiros que o deixaram morrer e pararia de fornecer a eles suas ervas mágicas. Tenho certeza de que, depois de ler meus exemplos, você também pensou em várias outras consequências relevantes e intrigantes para a morte do pobre Melion. Os RPGs são um meio que permitem que as mentes paranoicas e inquietas se satisfaçam ao conectarem pontos de necessidade e verossimilhança entre eventos que anteriormente não tinham nenhuma ligação.

Em resumo: nos RPGs, o jogo não termina quando um personagem falha. Pelo contrário, o jogo tem a capacidade de continuar e se tornar ainda mais interessante do que era momentos antes. Os RPGs não são apenas uma forma de contar histórias de grandes heróis e sua jornada inevitável em direção ao sucesso, mas um jogo que tem a capacidade inigualável de ir literalmente a qualquer lugar e lidar com qualquer eventualidade. Respeitar o fracasso do jogador significa respeitar a força de um meio que pode sustentar as verdadeiras consequências das decisões de um jogador, sejam elas quais forem. Em outras palavras, a capacidade deste meio de transformar qualquer evento em combustível para criar ainda mais jogo é incomparável. Falhar em um RPG pode ser tão divertido quanto vencer. Isso é o que torna os RPGs tão únicos.

06 fevereiro, 2024

Um dragão de 16 PVs - Texto de stras

Título original: "A 16 HP Dragon"
Escrito originalmente pelo usuário "stras" em forma de comentário 
no fórum online do Dungeon World em 14 de maio de 2012, e transposto para o site oficial de Sage LaTorra em 15 de maio de 2012.
Traduzido por Felipe Tuller

 

Nas discussões do fórum de Dungeon World, o usuário "stras" deu um exemplo de jogo que descreve perfeitamente por que me importo tanto com DW a ponto de dedicar todo esse esforço a ele:

"Azato,

Todos nós jogamos centenas de videogames e RPGs 'clássicos' (com os tropos clássicos de fantasia), nos quais aprendemos que lutar contra o monstro é uma questão de causar pequenos golpes suficientes para derrubá-lo enquanto vivemos o suficiente para fazê-lo (o modelo de WoW ou Final Fantasy).

Mas em Tolkien, Smaug devastou uma vila, matou milhares, e foi morto por uma única flecha colocada precisamente em uma brecha de sua escama.

Pense nessas lutas mais em termos de literatura e ritmo, em vez do clássico 'ele tem X de pontos de vida e temos que bater Y vezes com Q acertos para derrubá-lo'. O problema neste contexto é que não há ficção sendo levada em consideração, esta é uma solução mecânica (uma simulação) de uma espada consistentemente causando dano e ajustando os pontos de vida do monstro para permitir o mesmo método (bater) seja aplicado a todo problema (monstro).

Eu tive esse problema. Eu tive que voltar no texto quatro vezes quando li que um DRAGÃO tem 16 pontos de vida (um ranger de nível 1 pode causar isso ao rolar dano máximo). No entanto, deixe-me descrever um combate para você e talvez isso lhe dê uma 'noção' do que está acontecendo.

Então: o grupo precisava de um item mágico, e eles pesquisaram e descobriram que um herói empunhando o referido item foi morto por um dragão. Eles recebem algumas informações de um servo de um dragão em forma dracônico-humana, e vão lá e roubam o referido item. Lembre-se, "item mágico" neste mundo não significa 'mágico' no sentido de 'arma +1', e sim que esta lança pode perfurar almas e por isso é necessária para derrotar um rei feiticeiro. Ok, então temos um dragão muito zangado prestes a atacar algo. Lembrando: 16 pontos de vida - preparado?

O grupo está cavalgando de volta à cidade, pronto para um bom banho quente, reabastecer suprimentos (suas rações estavam acabando) e um foco renovado em caçar o rei feiticeiro. A lua some por um segundo, eles sentem o vento mudar, e então algo pousa sobre o prédio da prefeitura com um estrondo enorme. Eles têm apenas alguns segundos para piscar antes de verem uma cabeça reptiliana serpentear para baixo e rasgar um guarda vestindo cota de malha com um único golpe (prenuncia uma ruindade futura, este é o rótulo 'grotesco')*1. Eles aumentam a velocidade e seguem em direção à cidade. Eu boto um papel na mesa, e rapidamente desenho algumas ruas sinuosas, esboço algumas casas quadradas, boto um dado grande para representar o dragão. Enquanto eles estão prestes a entrar, eu pego um punhado de fichas vermelhas e descrevo a inalação que eles sentem de longe, e as palavras em língua dracônica, e basicamente despejo um monte de coisas vermelhas na cidade e explico que está pegando fogo e como as chamas estão sendo moldadas e comandadas pelo dragão.

Seus cavalos enlouquecem. Eles conseguem desmontar (alguns levando um pouco de dano de um cavalo correndo em pânico e um deles sendo atingido por um galho). Eles começam a avançar por essa paisagem infernal, onde uma sombra disforme descia e partia alguém ao meio, e pessoas queimando até a morte imploram por misericórdia e ajuda enquanto seguram crianças enfaixadas se transformando em cinzas em seus braços.

O grupo começa a ajudar os moradores da cidade (o lugar não possui fonte de magia, então o mago não pode simplesmente criar um ritual de chuva) quando um prédio se despedaça com o pouso de uma criatura de 4 ou 5 toneladas, e ele abre suas narinas, seus olhos dourados queimando e sua pele metálica ressoando com um rugido (aterrorizante).

Seus companheiros se dispersam, os PJs têm que desafiar seu próprio terror para atacar a criatura. Eles causam um dano negligenciável ("aêê!" para a armadura 4) para aqueles que CONSEGUEM FAZER alguma coisa, e percebem que a única pessoa que tem uma chance de matar aquilo é o mago com feitiços de penetração de armadura. Infelizmente, o dragão percebe o mesmo.

O que se segue é horrível. Um guerreiro assume posição defensiva, quando o dragão acerta ele não causa só 1d10+5 de dano, ele arranca o braço dele fora ("grotesco", lembra?) e rasga sua cota de malha como se fosse papel. Ele usa ataques de sopro de fogo que fazem TODOS eles Desafiarem o Perigo ou queimarem*2.

O grupo se separa e foge. O dragão ri e se acomoda ali para reduzir a vila a cinzas e comer todos os sobrevivente.

O Dragão tinha 16 pontos de vida. O grupo deu 9 de dano antes de ir embora. E quando eu disse "ir embora", quero dizer que eles correram como coelhos pela noite com poucas provisões, nenhum meio fácil de recuperá-las e nenhum pensamento em suas cabeças além de sobreviver.

A moral da história é: não é sobre pontos de vida. No meu jogo de D&D 4e, o grupo tinha uma dúzia de mortes de dragões em seu currículo. Os dragões eram ameaçadores mecanicamente, eram ardilosos, eram táticos, mas suas garras e dentes não causavam "dano", eles causavam "números". Depois desta sessão, eles explicaram que nunca tinham ficado tão assustados com um monstro.

Torne as lutas algo épico. Use a ficção. Descreva a pele deles enegrecendo por conta do fogo. Os ossos se partindo pelo agarrão de pedra inescapável do elemental de terra. A maioria das lutas apaga a ficção ao dizer que você sofre 5 de dano. Faça ela permanecer, torne-a difícil de curar, deixe-os marcados e endurecidos pela batalha, tendo conquistado cada cicatriz, e em cada ferida uma história.

Você não precisa de 2.500 pontos de vida para tornar um combate algo difícil ou assustador."


 *1 "Rótulo 'grotesco'", "'messy' tag" no original. Faz referência a um dos elementos do bloco de estatísticas de um monstro no sistema Dungeon World. Segundo o manual, "rótulos" descrevem como os monstros causam dano e o alcance de seus ataques. O rótulo "grotesco" especificamente diz respeito aos efeitos destrutivos de uma criatura e/ou de uma arma (Dungeon World. Sage LaTorra e Adam Koebel. Trad. Tiago Marinho. Belo Horizonte: Secular Games, 2013, p. 339).

*2 "Desafiar o perigo", "Defy danger" no original. Faz referência à mecânica de "movimentos", peça central em jogos "powered by the apocalypse". Segundo o manual, o movimento de "Desafiar o perigo" é desencadeado quando um personagem precisar "agir apesar de qualquer perigo iminente" ou for "sofrer alguma calamidade" (Dungeon World. Sage LaTorra e Adam Koebel. Trad. Tiago Marinho. Belo Horizonte: Secular Games, 2013, p. 56).

05 dezembro, 2023

Não prepare enredos - texto de Justin Alexander

Título original: "Don't Prep Plot"
Escrito originalmente por Justin Alexander em seu blog intitulado "The Alexandrian" em 23 de março de 2009. Links originais foram mantidos.
Traduzido por Felipe Tuller

Se você está mestrando um roleplaying game, você nunca deve preparar*1 um enredo.

Cada um tem seu próprio gosto. Essas questões são subjetivas. O que funciona para uma pessoa não necessariamente funcionará para outra. Blá, blá, blá.

Mas, sério, não prepare enredos.

Primeiro, uma definição dos termos: Um enredo é a sequência de eventos em uma história.

E o problema ao tentar preparar um enredo para um RPG é que você está tentando predeterminar eventos que ainda não aconteceram. Sua sessão de jogo não é uma história — é um acontecimento. É algo sobre o qual histórias podem ser contadas, mas na gênese do momento, não é uma contação de história. É um fato que está se revelando.

Preparando sem Enredos 

Não prepare enredos, prepare situações.

Qual é a diferença?

Um enredo é uma sequência de eventos: A acontece, depois B acontece, depois C acontece. (Em formas mais complicadas, a sequência de eventos pode se ramificar como em um livro de Choose Your Own Adventure*2, mas o princípio permanece o mesmo.)

Uma situação, por outro lado, é apenas um conjunto de circunstâncias. Os eventos que ocorrem como resultado dessa situação dependerão das ações que os PJs tomarem.

Por exemplo, um enredo pode parecer assim: "Perseguindo os vilões que escaparam durante a sessão da semana passada, os PJs entrarão em um navio com destino à cidade portuária de Tharsis. Durante a viagem, eles avistarão um navio abandonado. Eles embarcarão no navio abandonado e descobrirão que um dos vilões se transformou em um monstro e matou toda a tripulação... exceto por um único sobrevivente. Eles lutarão contra o monstro e resgatarão o sobrevivente. Enquanto eles estão lutando contra o monstro, o navio abandonado terá flutuado para o território aquático de Tharsis. Eles serão interceptados por uma frota de Tharsis. Uma vez que a história deles for contada, eles serão recebidos em Tharsis como heróis por seu ousado resgate do navio abandonado. Seguindo uma pista dada pelo sobrevivente do navio abandonado, eles subirão o Monte Tharsis e chegarão ao Templo de Olympus. Eles podem então vagar e questionar as pessoas pelo templo. Isso não dará nenhum resultado, mas quando chegarem ao santuário central do templo, os vilões tentarão assassiná-los. A tentativa de assassinato dá errado, e o ídolo mágico no centro do templo é destruído. Infelizmente, esse ídolo é a única coisa que segura o templo sobre a costa da montanha — sem ele, o templo inteiro começa a escorregar pela montanha enquanto a batalha continua a ocorrer entre os PJs e os vilões!"

(Essa passagem é derivada de uma aventura publicada que realmente existe. Os nomes e o contexto foram alterados para proteger os inocentes. Pontos extras para quem conseguir identificar corretamente a fonte original.)

Uma situação, por outro lado, se parece com o seguinte: "Os vilões escaparam em dois navios em direção a Tharsis. Um dos vilões se transforma durante a viagem em um terrível monstro e mata a tripulação, deixando o navio flutuando abandonado pelas águas costeiras de Tharsis. Em tal e tal momento, o navio será avistado pela frota de Tharsis. Os outros vilões chegaram ao Templo de Olympus no topo do Monte Tharsis e assumiram identidades falsas."

O SEGREDO SUJO

Muitas pessoas se sentem intimidadas pela ideia de preparar sem um enredo. Parece ser muito trabalho. Se os jogadores podem fazer qualquer coisa, como você deve lidar com isso?

O segredo sujo, porém, é que, na verdade, é muito mais difícil preparar enredos do que situações.

Para entender o motivo, vamos analisar mais de perto nosso exemplo de uma aventura com enredo. É uma sequência de eventos bem entrelaçados que, quando desmembrados, se parece com o seguinte:

  1. Os PJs perseguem os vilões. (E se eles não o fizerem?)
  2. Os PJs precisam segui-los de navio. (E se decidirem seguir pela costa? Ou teletransportarem?)
  3. Os PJs precisam avistar a embarcação abandonada. (E se falharem em seu teste de Percepção?)
  4. Os PJs precisam entrar na embarcação abandonada. (E se simplesmente navegarem para longe dela?)
  5. Os PJs precisam resgatar o sobrevivente. (E se eles falharem? Ou optarem por fugir antes de perceber que o sobrevivente está lá?)
  6. Os PJs precisam questionar o sobrevivente. (E se decidirem não pressionar um homem ferido?)
  7. Os PJs precisam ir para o santuário central do templo.
  8. A tentativa de assassinato dos PJs precisa se desenrolar de uma maneira muito específica.

O que você está vendo é uma cadeia de potenciais pontos de falha. Cada um desses pontos é criado forçosamente com um resultado específico e esperado... e se esse resultado não ocorrer, o mestre fica encarregado de direcionar*3 os jogadores de volta aos trilhos que ele preparou.

Em oposição a isso, vamos ver o que precisamos para projetar essa mesma aventura como uma situação:

  1. Os PJs precisam perseguir os vilões. (Este é o gancho para o cenário como um todo. É um ponto potencial de falha compartilhado por todos os cenários. Se os PJs não estiverem interessados em ir à toca do dragão vermelho, não importa como você preparou a toca.)
  2. Você precisa criar a cidade de Tharsis. (Onde fica? Como é? O que os PJs podem fazer lá? Etc.)
  3. Você precisa criar a embarcação abandonada.
  4. Você precisa criar o Templo de Olympus.
  5. Você precisa criar estatísticas para a frota de Tharsis, os vilões e (possivelmente) o sobrevivente.
  6. Deve haver uma maneira de os PJs saberem que os vilões estão se escondendo no Templo de Olympus. (No design baseado em enredo, este é um dos pontos de falha: ou eles questionam o sobrevivente ou não têm como saber para onde ir em seguida. No design baseado em situação, você usaria a Regra das Três Pistas e daria conta de dois métodos adicionais pelos quais os PJs poderiam chegar a essa conclusão. Isso pode ser tão simples quanto fazer um teste de Obter Informações em Tharsis e/ou questionar o capitão/tripulação do navio que os vilões se apossaram.)

Aqui está o segredo sujo: olhe atentamente para essa lista. Com exceção do nº 6, todas essas são coisas que você também precisava preparar para a seu design baseado em enredo. (E até o nº 6 já está um terço completa.)

Aqui vai uma analogia: O design baseado em situação é como entregar aos jogadores um mapa e dizer "descubram para onde estão indo". O design baseado em enredo, por outro lado, é como entregar aos jogadores um mapa no qual uma rota específica foi desenhada com tinta invisível... e depois exigir que eles sigam esse caminho invisível.

DESIGN ROBUSTO

A vantagem da preparação baseada em situação é que ela é robusta. Surpreendentemente, no entanto, essa robustez não requer muito trabalho extra. Na verdade, como mostramos, normalmente ela dá muito menos trabalho. Aqui estão algumas coisas a serem consideradas ao fazer uma preparação baseada em situação.

REGRA DAS TRÊS PISTAS: Já dediquei um extenso ensaio à Regra das Três Pistas. Basicamente, a Regra das Três Pistas afirma o seguinte: Para qualquer conclusão que você deseja que os PJs alcancem, inclua pelo menos três pistas.*4

A teoria é que, mesmo que os jogadores percam duas pistas, você tem chances muito boas de que eles encontrem a terceira e resolvam a situação.

A Regra das Três Pistas s também pode ser aplicada ao design de aventuras em geral: Para qualquer problema em uma aventura, você deve sempre preparar pelo menos uma solução e permanecer aberto a quaisquer soluções potenciais que seus jogadores possam inventar. Mas para qualquer ponto de obstrução problemático (quer dizer: "um problema que deve ser superado para que a aventura continue"), tente incluir três rotas possíveis para o sucesso.

Isso pode parecer muito trabalho, mas esses caminhos distintos não precisam necessariamente ser complicados. (Na verdade, não devem ser.) Por exemplo, um problema pode ser: "Mickey Dee tem uma informação que os PJs precisam". As soluções podem ser tão simples quanto (1) nocauteá-lo e pegá-la; (2) negociar com ele para recebê-la; ou (3) entrar sorrateiramente em seu escritório e roubá-la. A preparação que você faz para qualquer uma dessas soluções cuida de 99% da preparação para as outras duas.

Deve ser observado que, apenas porque uma solução específica é algo "simples", não significa que o cenário será (ou deverá ser) simples. A complexidade do cenário emerge da maneira como uma determinada série de problemas é superada. E a boa notícia sobre a preparação baseada em situação é que você não precisa descobrir exatamente como esses problemas serão encadeados — isso surge naturalmente a partir das ações tomadas pelos PJs.

OPONENTES VISANDO OBJETIVOS: Ao invés de tentar adivinhar o que seus PJs farão e depois tentar planejar reações específicas para cada possibilidade, simplesmente pergunte a si mesmo: "O que o vilão está tentando fazer?"

A maneira mais eficaz de preparar esse material dependerá dos detalhes do cenário que você está criando. Talvez não seja mais do que uma lista sequencial de objetivos. Ou pode ser uma linha do tempo detalhada.

Note que alguns cenários não serão baseados em vilões tentando realizar algum ardil específico. Eles podem estar apenas vivendo a vida como de costume até que os PJs decidem aparecer e zoar tudo. Em outras palavras, o "objetivo" não precisa ser nada mais do que "manter a rotação dos guardas funcionando".

Se você estiver interessado em ver esse tipo de preparação em ação, eu disponibilizei um exemplo extenso de uso de linhas do tempo detalhadas retiradas da minha própria campanha. (Meus jogadores não devem clicar nesse link.)

NÃO PLANEJE CONTINGÊNCIAS ESPECÍFICAS: Independentemente da abordagem que você escolher, o ponto central é que geralmente você estará delineando o que aconteceria se os PJs não se envolvessem. Se você tiver algumas ideias sobre planos contingentes, vá em frente e anote-as, mas não gaste muito tempo com elas.

Digo "gaste seu tempo" porque é exatamente isso que a maioria do planejamento de contingência é. A estrutura básica do planejamento de contingência é: Se os PJs interferirem no ponto X, então os vilões fazem X2. Se os PJs interferirem no ponto Y, então os vilões fazem Y2. Se os PJs interferirem no ponto Z, então os vilões fazem Z2.

É claro que, se os PJs não interferirem no ponto X, então todo o tempo que você gastou preparando a contingência X2 será completamente desperdiçado. Ainda mais importante: se os PJs interferirem no ponto X, então os pontos Y e Z geralmente serão fundamentalmente alterados ou deixarão até de existir — então todo o trabalho de preparação que foi gasto em Y2 e Z2 também será desperdiçado.

É neste sentido que a preparação baseada em situações geralmente é criticada por exigir trabalho extra: as pessoas acham que precisam tentar se preparar para todas as ações concebíveis que os PJs podem tomar. Mas, na verdade, isso não é preparação baseada em situações. Isso é preparação baseada em enredos turbinada com esteroides de "Choose Your Own Adventure". É o tipo de preparação que você precisaria fazer se estivesse programando um jogo de computador.

Mas você não está programando um jogo de computador. Você está preparando um cenário para um RPG. Quando os PJs escolhem fazer X, Y ou Z (ou A, B ou C), você não precisa de uma reação pré-programada. Você está sentado bem ali, à mesa com eles. Você pode simplesmente reagir.

CONHEÇA SUA CAIXA DE FERRAMENTAS: Para reagir, você precisa conhecer sua caixa de ferramentas. Se os PJs começarem a investigar o Lorde Bane, que recursos ele tem para impedi-los? Se eles sitiarem o complexo dos escravizadores, quais são as defesas do local?

Ferramentas típicas incluem pessoal, equipamento, locais físicos e informações.

Por exemplo, se os PJs estiverem investigando um líder da máfia local, você pode saber que:

  1. Ele tem alguns pelotões de capangas, um assassino treinado em sua equipe e dois guarda-costas. Você também pode saber que possui uma ex-esposa e tem dois filhos. (Esses são todos tipos de pessoal.)
  2. Ele mora em uma mansão no lado leste, frequenta regularmente seu cassino ilegal de alto nível no porão secreto de um arranha-céu no centro e também tem um esconderijo montado em uma taverna decadente. (Esses são todos locais físicos.)
  3. Ele possui formas de chantagear um dos PJs. (Isso é informação.)
  4. Ele subornou um policial local. (Isso é um tipo diferente de pessoal.) 

E assim como em uma caixa de ferramentas real, você deve ter alguma noção da utilidade das ferramentas. Você sabe que um martelo se usa com pregos e uma chave de fenda se usa com parafusos. Da mesma forma, você sabe que o grupo de capangas pode ser usado para espancar os PJs como forma de aviso ou para proteger o esconderijo. Você sabe que a ex-esposa pode ser usada como fonte de informações sobre o sistema de segurança da mansão. E assim por diante.

Você pode pensar nisso como um planejamento de contingência não específico. Você não está se dando um martelo e depois planejando exatamente em quais pregos vai bater e com que força: você está se dando um martelo e dizendo: "Bem, se os jogadores me derem qualquer coisa que se pareça minimamente com um prego, eu já sei o que usar para bater."

(Por exemplo, você sabe que a ex-esposa está familiarizada com os detalhes das operações de seu marido e com a segurança da mansão. Isso é o martelo. O que você não precisa descobrir é como os PJs obtêm essas informações dela: Talvez eles apenas perguntem a ela gentilmente. Ou subornem ela. Ou ofereçam proteção a ela. Ou coloquem um grampo nela. Ou grampeiem seus telefones. Ou sequestrem seus filhos e ameacem matá-los a menos que ela plante uma bomba na mansão de seu marido. Esses são todos pregos. Os jogadores os fornecerão a você.)

O outro truque para projetar sua caixa de ferramentas é organizar os recursos pertinentes em conjuntos utilizáveis. Usemos os pelotões de capangas como exemplo: você poderia tentar acompanhar as ações de cada capanga individual enquanto conduz a aventura, mas isso rapidamente se torna incrivelmente complicado. Ao organizá-los em esquadrões, você se dá uma unidade gerenciável que pode acompanhar.

Por outro lado, não deixe essa organização te acorrentar. Se você precisar de um capanga individual, apenas destaque um deles de um dos pelotões e use-o. Você está desenhando uma floresta porque é mais fácil de mapear — mas se os PJs precisarem cortar lenha, não perca as árvores pela floresta.

CONCLUSÃO

Apesar da minha brincadeira na abertura deste ensaio, não há nada inerentemente errado com o design baseado em enredo. Muitos jogos excelentes foram conduzidos tanto com cenários fortemente baseados em enredos quanto o contrário. E certamente se pode argumentar que "Os jogadores não se importam se estão em uma ferrovia*3, contanto que o trem esteja indo para a Cidade Maravilhosa".

Mas devo admitir que, em minha experiência, a Cidade Maravilhosa geralmente é muito mais incrível quando deixo os PJs escolherem o seu próprio caminho.

Isso acontece porque sou um Mestre tão incrivelmente fantástico que sempre consigo ter jogo de cintura e criar uma improvisação incrível? Talvez. Mas acredito que tenha mais a ver com o fato de que os jogadores são muito bons em saber o que desejam. E se eles elaborarem um plano detalhado para se infiltrar no cassino do chefe da máfia como crupiês e jogadores, provavelmente se divertirão mais vendo esse plano se concretizar do que se eu o esmagasse artificialmente para que eles pudessem voltar à minha "incrível" ideia de sequestrar os filhos do chefe da máfia para usá-los como forma de chantagear sua esposa.

(O que não significa que os PJs devam sempre ter sucesso. Superar adversidades também é incrível. Mas há uma diferença entre um plano que não funciona porque não funcionou e um plano que não funciona porque eu, como Mestre, quero que eles estejam fazendo algo diferente.)

E, deixando de lado essa suposta vantagem do design baseado em enredo, não tenho certeza do que isso deveria estar oferecendo de fato. Por outro lado, as vantagens do design baseado em cenário são enormes:

  1. Ele requer bem menos trabalho para se preparar.
  2. Ele empodera os jogadores e torna suas escolhas significativas.

Este último ponto é imprescindível. Para mim, a razão de jogar um RPG é ver o que acontece quando os jogadores fazem escolhas significativas. Em minha experiência, o resultado é quase sempre diferente de qualquer coisa que eu poderia ter antecipado ou planejado.

Se eu quisesse contar uma história aos meus jogadores (o design baseado em enredo se resume a isso, enfim), então seria muito mais eficiente e eficaz simplesmente escrever uma história. Na minha opinião, se você está jogando um RPG, você deve jogar com os pontos fortes do meio: a criatividade mágica que só acontece quando as pessoas se reúnem.

Para exemplos do que estou falando, você também pode ler sobre os Sucessos Inesperados da minha própria mesa. As Gêmeas Mortes de Thuren Issek são particularmente incríveis.

Por outro lado, se você tem um grupo acostumado a ter o Caminho Correto diante de si para poder segui-lo, jogá-los repentinamente no fundo de um cenário aberto pode causar resultados desastrosos, assim como qualquer outra mudança súbita no estilo de jogo. Outros, é claro, se adaptarão imediatamente como peixes jogados na água. Mas se estiver enfrentando problemas, acalme-se e converse com seus jogadores. Explique de que forma o desentendimento está acontecendo. Talvez dê a eles uma cópia deste ensaio para que possam ter uma compreensão melhor do que está acontecendo (e do que não está acontecendo) por trás do escudo do mestre.

Suspeito que, uma vez que saibam que as correntes foram retiradas, eles vão se deleitar com sua liberdade recém-descoberta.