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21 abril, 2024

Seis culturas de jogo - Texto de John Bell

Título original: "Six Cultures of Play" Escrito originalmente por John Bell no seu blog intitulado "Retired Adventurer" em 06 de abril de 2021
Traduzido por Felipe Tuller. 
Parte dos links originais foram mantidos. Artigos da Wikipedia, quando possível, foram trocados por seu equivalente na versão em português.

Nessa postagem irei apresentar a taxonomia das seis principais culturas de jogo assim como algumas notas sobre as suas origens históricas. Estou fazendo isso para ajudar pessoas de diferentes culturas de jogo a entenderem seus próprios valores e também para encorajar uma melhor e mais produtiva discussão intercultural.

Há pelo menos seis culturas de jogo principais que surgiram ao longo do RPG enquanto hobby. Pode haver mais: a minha análise está restrita principalmente às culturas do RPG de língua inglesa, embora pelo menos três delas também estejam presentes significativamente em culturas de línguas não inglesas. Além dessas seis culturas, há uma proto-cultura que existiu entre 1970 a 1976, antes que a organização entre culturas se estabelecesse.

Uma cultura de jogo é um conjunto de normas organizadas (objetivos, valores, tabus, etc), considerações e técnicas que definem um grupo de pessoas que são tão numerosas a ponto de não estarem  todas em contato umas com as outras (vamos chamar isso de "comunidade"). Essas culturas de jogo são transmitidas por uma variedade de mídias, que vão desde livros e aventuras até pessoas ensinando umas às outras, artigos de revista e programas online via streaming. Uma cultura de jogo é bastante similar à "Network of practice", para quem está familiarizado com o jargão.

Pessoas que habitam o hobby, tendo sido alinhadas ou treinadas em uma ou mais dessas culturas, desenvolvem então estilos individuais. Gostaria de salientar que falar sobre jogos específicos como parte inerente de alguma cultura é algo enganoso, porque jogos podem ser jogados de modos variados, de acordo com os valores de diferentes culturas. Porém, muitos jogos contém textos nos quais advoga para que sejam jogados de uma maneira que está alinhada com uma cultura em particular, ou contém elementos que expressam a adoção, por parte de seu criador, de um conjunto de valores ligadas a uma cultura particular.
 

As seis culturas

1) Clássica

O jogo clássico é orientado pelo desenvolvimento progressivo e encadeado de desafios e poderes de PJs, no qual as regras existem para ajudar a manter tais características numa proporção aproximada entre elas e julgar a interação entre os dois "de maneira justa". Isso é explícito nas dicas para os Mestres do Guia do Mestre do AD&D 1e, mas reaparece em diversos outros lugares, talvez de maneira mais óbvia em módulos de torneio, especialmente a série "R" publicada pela RPGA nos seus primeiros três anos de existência, nos quais se enfatizavam trocas periódicas em certas partes da aventura para criar uma experiência "justa" para os jogadores que circulavam entre as diversas mesas de torneio.

O foco no jogo baseado em desafio significa muitas aventuras de viagem e labirintos sinuosos e recicla a mesma notação para descrever vilas, que também são tratadas como locais de desafios. Em determinado momento, os jogadores se tornam poderosos o suficiente para comandar domínios, e isso expande ainda mais o escopo do desafio ao permitir que hordas enormes se envolvam em conflitos no estilo dos wargames. O objetivo de jogar o jogo no modo clássico não é contar uma história (mas tudo bem se for o caso), ao invés disso o foco do jogo é lidar com desafios e ameaças que aumentam gradativamente seu escopo e o seu poder à medida que os PJs aumentam de nível. A ideia de campanhas mais longas com progressão lenta e contínua no poder dos PJs sendo interrompido apenas pela morte ocasional é uma jogabilidade ideal para a cultura clássica.

Isso surge em algum momento entre 1976 e 1977, quando Gygax muda sua ideia inicial de que OD&D é um "não-jogo" para tentar estabilizar a experiencia de jogo. Tudo começa com ele condenando "Dungeons and Beavers" e outras derivações do seu próprio estilo na edição de abril de 1976 da Strategic Review, mas isso muda ainda mais com o cronograma de publicação da TSR de 1977 em diante. Especificamente, eles começam a disponibilizar exemplos de jogos de modo concreto - masmorras e cenários de amostra, incluindo módulos - e dicas específicas aos consumidores sobre a forma adequada dos procedimentos de jogo e de seus valores.

Essa mudança começa com a publicação do Basic de Holmes (1977) e Lost Caverns of Tsojcanth (1977), antes de eventualmente culminar no AD&D (1977 & 1979) e a linha BECMI escrita por Metzer (1983-1986). A Judges Guild, a RPGA, a Dragon Magazine e até mesmo outras editoras (Mayfair games, por exemplo) pegaram carona nessa ideia e disseminam as normas Clássicas por aí antes de Gygax e Mentzer saírem da TSR no começo de 1985 ou 1986. A Judges Guild perde sua licença para publicar materiais de D&D em 1985, e os torneios do RPGA abandonam o jogo clássico em meados de 1983. A maioria dos outros criadores na TSR tinham mudado para o "trad" (veja abaixo) até meados dos anos 1980 e então o suporte institucional para esse estilo começa a perder a importância, apesar de pessoas continuarem a mestrar e jogar em mesas "clássicas".

O Clássico é revivido no começo dos anos 2000 quando os remanescentes que continuaram a jogar nesse estilo usaram a internet para se reunirem em fóruns como Dragonsfoot, Knights and Knaves  Alehouse e outros, e esse renascimento é parte do que motivou o lançamento de OSRIC (2006). NB: este é o único nome neste ensaio que não é uma autodenominação usada pelos próprios praticantes, embora Gus L. do blog All Dead Generations tenha interesse em muitas de suas ideias e chame seu próprio estilo de "clássico".

Uma peculiaridade estranha da história é que as pessoas que estavam tentando reviver o clássico no começo dos anos 2000 são frequentemente alocadas na OSR, apesar dos dois grupos na verdade terem normas e valores distintos. Algumas dessas confusões se devem ao fato de que algumas pessoas chaves e notáveis (por exemplo, Matt Finch) de fato mudaram de serem revivalistas clássicos para serem fundadores pioneiros da OSR. Porque ambos os grupos estão interessados em jogo baseado em desafios, mesmo que eles tenham posições distintas no significado do desafio, há momentos de coincidência produtiva e de interação (e também muitas disputas bobas e deboches; é a vida).

Essa mistura de pessoas vindas de culturas de jogo diferentes, que inicialmente pareciam ser parte do mesmo movimento, mas que acabam se interessando em coisas diferentes, é algo bem comum - jogos de história e LARP nórdicos passam por uma mistura semelhante antes de se dividirem em coisas diferentes (mais sobre isso em um segundo).
 

2) Trad (abreviação de "tradicional")

Seus próprios adeptos e defensores a chamam de "trad", mas não devíamos defini-la como a forma mais antiga de RP (ela não é). Trad não é o que Gary & companhia fizeram (isso é o "clássico"), e sim a reação ao que eles faziam.

O trad defende que o principal objetivo de um jogo é criar uma narrativa satisfatória de modo emocionante, e que o Mestre é o agente criativo principal para fazer com que isso ocorra - construir o mundo, estabelecer todos os detalhes da história, jogar com todos os antagonistas e fazer isso principalmente de acordo com seus gostos e opiniões particulares. O PJ pode contribuir, mas suas contribuições são secundárias em valor e em autoridade em relação ao Mestre. Se você já ouviu pessoas reclamando sobre (ou exaltando!) jogos que dão a sensação de se guiarem por um romance de fantasia, trata-se de trad. O trad valoriza jogos que produzem experiências comparáveis com outras mídias, como filmes, romances, televisão, mitos, etc, e seus valores frequentemente encorajam adaptações de técnicas dessas mídias.

O trad surge no final dos anos 1970, com um centro intelectual inicial situado no grupo de Dungeons and Beavers da Caltech, mas também no círculo de jogo de Tracy e Laura Hickman em Utah. O incidente definidor para Tracy evidentemente foi esbarrar em um vampiro numa masmorra e pensar que aquilo merecia uma história para explicar o que ele estava fazendo enquanto perambulava lá dentro. Hickman escreveu uma série de aventuras nos anos 1980 (a série Night Verse) que tentava incorporar mais elementos narrativos, mas a empresa que deveria publicá-las faliu. Então ele decidiu vendê-las para a TSR, mas eles só as comprariam se ele fosse trabalhar para eles. Então, em 1982, ele foi trabalhar na TSR e em alguns anos, suas ideias se espalhariam pela empresa e se tornaria a visão central do que era "roleplaying". 

O trad ganha sua primeira publicação que articula sua visão de jogo fora da TSR no Call of Cthulhu de Sandy Petersen (1981), que diz ao leitor que o objetivo do jogo é criar uma experiência como uma história de terror e fornece dicas específicas (o modelo "camadas de cebola") para criar isso. Os valores do trad se cristalizam como uma cultura de jogo distinta e importante dentro do D&D com os módulos Ravenloft (1983) e Dragonlance (1984), escritos por Hickman. A TSR publicou Ravenloft em resposta ao sucesso comercial e de críticas do Call of Cthulhu, e então ela própria recebeu um punhado de prêmios e vendeu toneladas de cópias.

Dentro de poucos anos, as ideias de "jogo de interpretação de personagens, e não jogo de rolar dados"1 e da importância de um Mestre que crie uma narrativa elaborada e emocionalmente satisfatória se tornaram dominantes. Creio que a capacidade de importar termos e ideias de outras formas de arte provavelmente também ajudaram um bocado, já que qualquer pessoa que passou por algumas disciplinas de humanas na faculdade consegue compreender o trad.

O trad é a cultura de jogo hegemônica pelo menos desde meados dos anos 1980 até o início dos anos 2000, e ainda é um estilo de jogo bastante comum. Para um exemplo bastante bem pensado visto pelas lentes de alguém que tem sido influente nos últimos 15 anos, dê uma olhada no RPG Lexicon de S. John Ross.

Os próximos dois estilos surgem a partir de problemas com o trad, especialmente com a experiência de jogar Vampiro (um jogo "mais tradicional impossível" nas aspirações de seus autores), mas os detalhes disso são grades demais para esse ensaio dar conta, então eu vou apenas deixar uma menção a isso e reserva-los para outra ocasião.
 

3) Larp nórdico

Novamente, essa é uma autodenominação. A palavra "nórdico" refere-se mais às origens e à maior parte da base de jogadores do que de fato uma delimitação regional de qualquer tipo. A designação "Larp" faz parte do nome por razões que me escapam, apesar dessas ideias terem começado com RPGs de mesa, e da sua filosofia e suas aspirações serem realizáveis tanto em jogos de mesa quanto em jogos "de se vestir". (nota de edição: pronunciar seu nome como se não fosse um acrônimo é uma crença ultrapassada do Larp nórdico, então, para seguir o princípio da autodeterminação, eu editei o texto para seguir essa convenção ao me referir a essa cultura, mas mantive a atividade com LARP).

O larp nórdico é criado com base na ideia de que o objetivo central de um RPG é a imersão numa experiência. Normalmente numa experiência de um personagem específico,  mas às vezes num outro tipo de experiência na qual jogador e personagem não se distinguem tanto. Quanto mais "bleed" você consegue criar entre o jogador e o papel que ele ocupa dentro do jogo, melhor. Larps nórdicos geralmente apresentam "sessões" bem longas (como excursões de fim de semana) seguidas de bate papos longos nos quais o participante processa as experiências que teve na pele do personagem.
 
Incorporar o personagem do jogador dentro de uma história maior pode ser uma maneira de produzir experiências vívidas e imersivas, mas não é algo necessário e talvez possa interferir no seu sucesso (especialmente quando feito de uma forma ruim). Jogadores de Larp nórdico enfatizam seus aspectos colaborativos, mas quando você se aprofunda nesse aspecto, se trata da rejeição da ideia trad de um único Mestre-autor criando uma experiência, e a colaboração está lá à serviço do melhoramento da imersão, misturando a agência do jogador e do personagem de forma mais completa.

Eu acho que LARP invoca a imagem de pessoas fazendo cosplay do gênero de fantasia, e às vezes há elementos disso no Larp nórdico, mas eu realmente acho que a tendência tem sido se afastar de jogos fantásticos e se aproximar de cenários e configurações que são mais próximos da vida real, já que isso permite a incorporação da arquitetura moderna, da tecnologia e de outros detalhes do mundo real para facilitar a imersão.

A primeira grande publicação do Larp nórdico de que eu tenho notícia é profundamente autoconsciente Manifesto da Escola Turku, escrito por Mike Pohjola no ano 2000, e eu acho que a comunidade inicial está dialogando com o pessoal do Forge, embora os dois grupos tenham ideais de jogo bem distintos. Em 2005, temos grupos específicos como o Jeep desenvolvendo essas ideias, e em 2010 temos a publicação do livro intitulado Larp nórdico. Hoje em dia, também temos uma wiki e um site oficial.

Larp nórdico é a parte do RPG que parece receber mais subsídios e fundos para estudos acadêmicos. Eu não tenho certeza do porquê, embora eu suspeite que parte disso tenha a ver com o interesse de comercializar as ideias do LARP para criar experiências de entretenimento imersivo para turistas em mega-resorts nos países do Conselho de Cooperação do Golfo. Eu não vou indicar aqui nenhum indivíduo específico relacionado ao Larp nórdico que tenha empregos lá para evitar expor a privacidade de certos invíduos, mas eles existem (por favor, não exponha ninguém nos comentário também).
 

4) Jogos de história ("Story Games")

Novamente, uma autodenominação. A maioria das pessoas que não gostam deles os chamam de coisas como "jogos da Forge" ou "jogos indies pós-Forge" devido aos fóruns de RPG indie The Forge. "RPGs indies" foi um termo usado em relação a eles por um tempo, mas eu não acho que isso era particularmente distintivo ou edificante, e evidentemente aqueles que aderiram a essa cultura também não, já que eles praticamente abandonaram o termo. Aqui está uma postagem do Across the Table discutindo a origem do termo "jogos de história".

O "Big Model" é notoriamente obtuso e a teoria pós-Forge tem muitas ideias que eu discordo fortemente, mas eu acho que uma caracterização  justa da sua posição que não utilize sua própria terminologia é a de que a experiência de jogo ideal minimiza a dissonância ludonarrativa. Um bom jogo possui uma consonância entre os desejos das pessoas jogando, as próprias regras e as dinâmicas dessas coisas interagindo. Juntas, essas coisas permitem que as pessoas obtenham seus desejos, sejam eles quais forem. A "incoerência" deve ser evitada, pois cria "jogo nulo" ou "dano cerebral" como já nomeou Ron Edwards uma vez.

O pessoal dos jogos de história, todo mérito a eles, está disposto a ser bastante radical em relação às técnicas para obter esse fim - tanto as próprias mecânicas quanto o desenvolvimento de posições (jogadores narrativistas costumam chama-las de "Agendas Criativas") como "narrativismo" visam criar consonância e evitar dissonância em tantos níveis quanto possíveis.

Jogos de história começam com Ron Edwards em 1999, quando ele escreve Sistema Importa e cria a Forge. Em 2004 temos o Glossário Provisório e o Big Model, e um milhão de discussões na internet sobre o que é e o que não é "narrativismo" e o quanto de "dano cerebral" os RPGs estão causando, etc. Os fóruns The Story Games em si são criados em 2006 como um sucessor ao Forge. Ao longo da última década, o grande agrupamento para criação de jogos de história tendeu a se orientar em torno de jogos "Powered by the Apocalypse", padronizados a partir ou construido sobre Apocalypse World de Vincent Baker.

Aliás, se você quer um bom exemplo de alguém aplicando as normas culturais dos jogos de história a um jogo que foi escrito para ser jogado de uma maneira trad, The Sacrament of Death de Eero Tuovinen descreve suas experiências fazendo exatamente isso.
 

5) A OSR ("Renascença/Reavivamento da Velha Escola")

Sim, isso aparece tarde na enumeração cronológica. E, sim, a OSR não é o jogo "clássico". É uma reinvenção romântica, e não uma cadeia ininterrupta da tradição.
 
A OSR se inspira no jogo baseado em desafio da protocultura do D&D e combina isso com um interesse na agência do PJ, particularmente através da tomada de decisão. O objetivo é um jogo no qual as tomadas de decisão do PJ, especialmente a tomada de decisão diegética, é o motivador do jogo. Eu acho que você consegue observar isso de uma forma bastante pura nos conselhos que Chris McDowall dá em seu blog para mestrar Into the Odd e Eletric Bastionland.
 
Uma observação importante que farei aqui é distinguir a jogabilidade baseada em desafio gradual da cultura "clássica" da jogabilidade baseada em desafio mais variável da OSR. A OSR basicamente não se importa com "balanceamento" no contexto do "balanceamento do jogo" (Gygax se importava). A variação na agência do jogador ao longo de uma série de decisões é bem mais importante para a maioria dos jogadores da OSR do que ela é para jogadores clássicos.
 
A OSR rejeita especificamente  a mediação autoritária  de uma estrutura de regras pré-existentes para poder encorajar interações diegéticas usando o que S. John Ross chamaria de "recursos efêmeros" e "livros de regras invisíveis", e que a OSR chama de "jogando com o mundo" e "habilidade do jogador", respectivamente. Basicamente, ao não se restringir pelas regras, você pode jogar com recursos num espaço mais amplo que ajudam a estabelecer diferenças em agências de PJs de modos potencialmente muito precisos e finamente graduadas, e isso permite que você crie uma ampla variedade de desafios para que os jogadores possam superar. Eu poderia escrever uma postagem inteira apenas sobre o que tabelas de encontros aleatórios se propõem a fazer, mas digamos que elas se relacionam com a variação na agência e introduzem surpresas e imprevisibilidade, garantindo que a agência possa variar com o passar do tempo.
 
Eu tendo a marcar o início da OSR logo após a publicação do OSRIC (2006), que abriu a possibilidade de usar a OGL para republicar as mecânicas do D&D antigo, pré-3.x. Com essa nova opção, tínhamos pessoas que basicamente queriam reviver o AD&D 1e enquanto um jogo vivo e pessoas que queriam usar conjuntos de regras antigas como um propulsor para suas próprias criações. Em 2007 foi lançado Labyrinth Lord, e a avalanche veio logo após. A OSR inicial tinha o Grognardia para fornecer uma visão reconstruída do passado e se posicionar como sua herdeira, possuia um desenvolvimento intelectual distinto como os "diagramas de Melan" para masmorras e os pointcrawls de Chris Kutalik, e eu diria que ela passou os anos entre 2006 e mais ou menos 2012 formatando suas normas sob um conjunto de ideias sobre o estilo de jogo pertinente de maneira relativamente consistente.
 

6) OC / Neo-trad

Esse é o único termo que não é totalmente uma autodenominação, apesar de que "OC" possa ser incluído a uma postagem de "procurando mesa" online para recrutar pessoas dessa cultura de forma consistente, então é algo próximo. Eu também chamo isso de "neo-trad", em primeiro lugar porque a cultura de RPG OC compartilha muitas das mesmas normas do trad, em segundo lugar porque eu acho que as pessoas que pertencem a essa cultura acreditam que fazem parte do trad. Às vezes também é possível ver esse estilo ser chamado de "o estilo moderno" quando contrastado com a OSR. Aqui está um exemplo de alguém que usa o nome "neo-trad" elaborando uma ideia bem pura do estilo (apesar de que eu discorde com a lista de jogos apresentadas como exemplos de neo-trad no final do artigo). No Reddit, "OC" é frequentemente chamado de "moderno", como quando se diz "o jeito moderno de se jogar" ou "jogos modernos".

OC basicamente concorda com o trad de que o objetivo do jogo é contar uma história, mas diminui a autoridade do Mestre como o criador daquela história e aumenta o papel dos jogadores enquanto criadores e contribuidores. O Mestre se torna um curador e um facilitador que basicamente trabalha com materiais derivados de outras fontes - na prática, de editoras e de jogadores. A cultura OC possui um sentido diferente para o que é uma "história", focando em suas aspirações e interesses e em seus desejos como sendo o melhor caminho para produzir "diversão" para os jogadores.

Esse foco em realizar as aspirações do jogador é o que permite tanto que o Mago nível 20 conjurando Chuva de Meteoros para aniquilar um adversário e as pessoas que estão usando D&D 5e para simular a administração de um restaurante fictício a serem parte de uma mesma cultura de jogo. Essa cultura às vezes é pejorativamente  chamada de "Tirania da Diversão" (um termo forjado na OSR), por conta do seu foco em gratificações relativamente rápidas se comparadas a outros estilos. 

O termo "OC" significa "original character" ("personagem original") e vem do roleplay online sem regras bem definidas realizados por fãs de franquias que era popular no Livejournal e em plataformas similares no começo dos anos 2000. "OC" é quando você chega com um personagem original em um RPG situado no universo de Harry Potter ao invés de jogar como Harold, o policial, sendo ele mesmo. Apesar de ser "sem regras bem definidas" (o que significa: sem rolagens de dados e sem Mestre de Jogo), esses jogos normalmente tem conjuntos de regras bem grandes sobre os tipos de afirmações que uma pessoa pode introduzir no jogo, com jogadores usando o conjunto de regras uns contra os outros para resolver disputas. Para as gerações mais jovens de jogadores de RPG, jogos desse tipo muitas vezes foram sua porta de entrada para o hobby.

Eu acho que RPG OC surge durante a era do 3.x (2000-2008), provavelmente com o crescimento das Aventuras Base de Living Greyhawk e o aparato de "mesa oficial", e os jogos online com estranhos de forma mais geral. Mesas oficiais acabaram diminuindo o poder do Mestre e concedendo autoridade aos textos de regras, editoras, administradores e, na verdade, aos jogadores. Já que Mestres podem variar de aventura em aventura, mas os personagens dos jogadores permanece, eles se tornam mais importantes, com regras padronizadas proporcionando compatibilidade entre os jogos. O "critério do Mestre" e a invenção se tornam coisas que interferem com essa intercompatibilidade e, portanto, são depreciadas. É aqui que vem a ênfase em "RAW" ("rules as written" ou "regras ao pé da letra") e o uso exclusivo de material oficial (mas também a ideia de que se é algo publicado, deve estar disponível na mesa) - isso mina o poder do Mestre e dá o poder nas mãos dos PJs.

Essas normas foram reforçadas e espalhadas por fóruns sobre "otimização de personagem" que baseavam exclusivamente no texto e depreciavam a "determinação do Mestre"2, e pelas ferramentas oficiais de criação de personagem no D&D e em outros jogos. Módulos, que limitam de modo importante o critério do Mestre para fornecer um conjunto de condições fixas para os jogadores, são outros apoios importantes para esse estilo. Estilos OC são particularmente populares em jogos online via streaming como Critical Role, já que quando bem feitos produzem jogos que são bem fáceis de  assistir como programas de TV. Os personagens na stream se tornam objetos de inspiração com os quais uma base de fãs desenvolve um relacionamento parasocial e com os quais eles comemora quando finalizam seus "arcos".
 

Sem quiz, sem rótulos

Quando eu apresentei isso aqui em um fórum pela primeira vez, alguém disse brincando que eu tinha que fazer um quiz para as pessoas determinarem a qual cultura de jogo elas pertenciam, mas eu prefi não fazer isso. Na verdade, eu acho que a maioria dos jogadores e dos grupos são uma misturas de culturas, com essa mistura se mostrando como um estilo individual. As culturas de jogo são mais como paradigmas - elas são coerentes em um nível de valores e reflexão sobre o que "excelência de jogo" poderia significar (dito de maneira mais formal, elas compartilham "teloi" de jogo). Fazer parte de uma cultura de jogo é, em algum sentido, a capacidade de reconhecer quando outra pessoa está jogando de acordo com um conjunto de valores que você compartilha com ela.

Meu objetivo principal com a taxonomia acima é ajudar as pessoas a entenderem melhor que há paradigmas de jogo distintos, que valorizam coisas diferentes, apesar deles poderem ser costurados todos juntos (com toda a sorte de resultados divertidos) em situações concretas. Eu duvido que esta lista seja exaustiva, e provavelmente há culturas que eu deixei de fora, bem como outras que ainda estão para nascer. O objetivo principal dessa lista é ilustrar brevemente que há muitos valores de jogo distintos, e também discutir a lógica que anima algumas das mais conhecidas.

O objetivo inicial deste ensaio era falar sobre RPG OC, já que eu acho que essa é a cultura menos bem caracterizada por aí, e a maioria das caracterizações são relativamente pejorativas (veja "tirania da diversão" acima). Também tende a haver muita confusão entre pessoas que atuam dentro dos paradigmas do OC e do trad, já que eles normalmente usam os mesmos termos para se referir a coisas bastante distintas.
 
Além disso, sem querer ser babaca, o RPG OC tende a ser o paradigma padrão dos novos jogadores entrando no hobby via streaming, e então eles tem a maior quantidade de pessoas que são despreparadas e ignorantes em relação à história do RPG. Eu tenho esperança de que articulando os seus valores e relacionando-os com o restante do hobby os encorajará a desenvolver a cultura do RPG OC de formas interessantes e robustas, enquanto também os afasta da arrogância em relação à universalidade da sua visão.

Estou esperançoso de que a taxonomia acima vai ajudar as pessoas a apreender e navegar as diferenças entre as culturas e os estilos ao invés de constantemente dar de cara com becos sem saída quando os pressupostos básicos sobre o jogo na qual a pessoa está se apoiando simplesmente não forem compartilhados por seu(s) interlocutor(es).

Eu, infelizmente, não posso responder diretamente aos comentários do blog, então se as pessoas deixarem comentários ou perguntas sobre a taxonomia acima, eu irei agrupá-las e responder em uma postagem futura.

1 "roleplaying, not rollplaying" no original. Um trocadilho que enfatiza a valorização da interpretação e da narrativa pela cultura "trad" do RPG.
2 "DM fiat" no original. Uma expressão bastante comum no meio do RPG anglófono que faz referência ao poder de arbítrio do Mestre, que pode criar ou ignorar regras do sistema e/ou simplesmente dizer o que acontece na realidade ficcional do jogo da maneira que melhor lhe convém.

06 fevereiro, 2024

Um dragão de 16 PVs - Texto de stras

Título original: "A 16 HP Dragon"
Escrito originalmente pelo usuário "stras" em forma de comentário 
no fórum online do Dungeon World em 14 de maio de 2012, e transposto para o site oficial de Sage LaTorra em 15 de maio de 2012.
Traduzido por Felipe Tuller

 

Nas discussões do fórum de Dungeon World, o usuário "stras" deu um exemplo de jogo que descreve perfeitamente por que me importo tanto com DW a ponto de dedicar todo esse esforço a ele:

"Azato,

Todos nós jogamos centenas de videogames e RPGs 'clássicos' (com os tropos clássicos de fantasia), nos quais aprendemos que lutar contra o monstro é uma questão de causar pequenos golpes suficientes para derrubá-lo enquanto vivemos o suficiente para fazê-lo (o modelo de WoW ou Final Fantasy).

Mas em Tolkien, Smaug devastou uma vila, matou milhares, e foi morto por uma única flecha colocada precisamente em uma brecha de sua escama.

Pense nessas lutas mais em termos de literatura e ritmo, em vez do clássico 'ele tem X de pontos de vida e temos que bater Y vezes com Q acertos para derrubá-lo'. O problema neste contexto é que não há ficção sendo levada em consideração, esta é uma solução mecânica (uma simulação) de uma espada consistentemente causando dano e ajustando os pontos de vida do monstro para permitir o mesmo método (bater) seja aplicado a todo problema (monstro).

Eu tive esse problema. Eu tive que voltar no texto quatro vezes quando li que um DRAGÃO tem 16 pontos de vida (um ranger de nível 1 pode causar isso ao rolar dano máximo). No entanto, deixe-me descrever um combate para você e talvez isso lhe dê uma 'noção' do que está acontecendo.

Então: o grupo precisava de um item mágico, e eles pesquisaram e descobriram que um herói empunhando o referido item foi morto por um dragão. Eles recebem algumas informações de um servo de um dragão em forma dracônico-humana, e vão lá e roubam o referido item. Lembre-se, "item mágico" neste mundo não significa 'mágico' no sentido de 'arma +1', e sim que esta lança pode perfurar almas e por isso é necessária para derrotar um rei feiticeiro. Ok, então temos um dragão muito zangado prestes a atacar algo. Lembrando: 16 pontos de vida - preparado?

O grupo está cavalgando de volta à cidade, pronto para um bom banho quente, reabastecer suprimentos (suas rações estavam acabando) e um foco renovado em caçar o rei feiticeiro. A lua some por um segundo, eles sentem o vento mudar, e então algo pousa sobre o prédio da prefeitura com um estrondo enorme. Eles têm apenas alguns segundos para piscar antes de verem uma cabeça reptiliana serpentear para baixo e rasgar um guarda vestindo cota de malha com um único golpe (prenuncia uma ruindade futura, este é o rótulo 'grotesco')*1. Eles aumentam a velocidade e seguem em direção à cidade. Eu boto um papel na mesa, e rapidamente desenho algumas ruas sinuosas, esboço algumas casas quadradas, boto um dado grande para representar o dragão. Enquanto eles estão prestes a entrar, eu pego um punhado de fichas vermelhas e descrevo a inalação que eles sentem de longe, e as palavras em língua dracônica, e basicamente despejo um monte de coisas vermelhas na cidade e explico que está pegando fogo e como as chamas estão sendo moldadas e comandadas pelo dragão.

Seus cavalos enlouquecem. Eles conseguem desmontar (alguns levando um pouco de dano de um cavalo correndo em pânico e um deles sendo atingido por um galho). Eles começam a avançar por essa paisagem infernal, onde uma sombra disforme descia e partia alguém ao meio, e pessoas queimando até a morte imploram por misericórdia e ajuda enquanto seguram crianças enfaixadas se transformando em cinzas em seus braços.

O grupo começa a ajudar os moradores da cidade (o lugar não possui fonte de magia, então o mago não pode simplesmente criar um ritual de chuva) quando um prédio se despedaça com o pouso de uma criatura de 4 ou 5 toneladas, e ele abre suas narinas, seus olhos dourados queimando e sua pele metálica ressoando com um rugido (aterrorizante).

Seus companheiros se dispersam, os PJs têm que desafiar seu próprio terror para atacar a criatura. Eles causam um dano negligenciável ("aêê!" para a armadura 4) para aqueles que CONSEGUEM FAZER alguma coisa, e percebem que a única pessoa que tem uma chance de matar aquilo é o mago com feitiços de penetração de armadura. Infelizmente, o dragão percebe o mesmo.

O que se segue é horrível. Um guerreiro assume posição defensiva, quando o dragão acerta ele não causa só 1d10+5 de dano, ele arranca o braço dele fora ("grotesco", lembra?) e rasga sua cota de malha como se fosse papel. Ele usa ataques de sopro de fogo que fazem TODOS eles Desafiarem o Perigo ou queimarem*2.

O grupo se separa e foge. O dragão ri e se acomoda ali para reduzir a vila a cinzas e comer todos os sobrevivente.

O Dragão tinha 16 pontos de vida. O grupo deu 9 de dano antes de ir embora. E quando eu disse "ir embora", quero dizer que eles correram como coelhos pela noite com poucas provisões, nenhum meio fácil de recuperá-las e nenhum pensamento em suas cabeças além de sobreviver.

A moral da história é: não é sobre pontos de vida. No meu jogo de D&D 4e, o grupo tinha uma dúzia de mortes de dragões em seu currículo. Os dragões eram ameaçadores mecanicamente, eram ardilosos, eram táticos, mas suas garras e dentes não causavam "dano", eles causavam "números". Depois desta sessão, eles explicaram que nunca tinham ficado tão assustados com um monstro.

Torne as lutas algo épico. Use a ficção. Descreva a pele deles enegrecendo por conta do fogo. Os ossos se partindo pelo agarrão de pedra inescapável do elemental de terra. A maioria das lutas apaga a ficção ao dizer que você sofre 5 de dano. Faça ela permanecer, torne-a difícil de curar, deixe-os marcados e endurecidos pela batalha, tendo conquistado cada cicatriz, e em cada ferida uma história.

Você não precisa de 2.500 pontos de vida para tornar um combate algo difícil ou assustador."


 *1 "Rótulo 'grotesco'", "'messy' tag" no original. Faz referência a um dos elementos do bloco de estatísticas de um monstro no sistema Dungeon World. Segundo o manual, "rótulos" descrevem como os monstros causam dano e o alcance de seus ataques. O rótulo "grotesco" especificamente diz respeito aos efeitos destrutivos de uma criatura e/ou de uma arma (Dungeon World. Sage LaTorra e Adam Koebel. Trad. Tiago Marinho. Belo Horizonte: Secular Games, 2013, p. 339).

*2 "Desafiar o perigo", "Defy danger" no original. Faz referência à mecânica de "movimentos", peça central em jogos "powered by the apocalypse". Segundo o manual, o movimento de "Desafiar o perigo" é desencadeado quando um personagem precisar "agir apesar de qualquer perigo iminente" ou for "sofrer alguma calamidade" (Dungeon World. Sage LaTorra e Adam Koebel. Trad. Tiago Marinho. Belo Horizonte: Secular Games, 2013, p. 56).